Em seu novo lançamento, M. Night Shyamalan se afasta da fantasia sem abandonar, porém, o compromisso com a farsa.
Eu e minha esposa assistimos na quinta-feira a “Armadilha” em horários diferentes. Eu só poderia ir à noite. Ela já tinha compromisso no horário, por isso foi pela tarde. Quando chegou da sessão, ela me fez apenas um comentário. Disse que estranhou a ausência de um elemento fantástico no filme de M. Night Shyamalan. Entrei na minha sessão tendo isso em mente, e lá pela metade, em um momento específico que envolve a subida de determinada personagem no palco do show de Lady Raven (Saleka Shyamalan), me peguei pensando que para aquela personagem a fantasia fora sim realizada. Todos os fãs de artistas pop hão de convir que o dia vivido por Riley (Ariel Donoghue) é digno de sonho, mesmo que este se revele posteriormente como um grande pesadelo.
Nath, minha esposa, não estava errada. De fato, não há nada “sobrenatural” em Armadilha, como há na maior parte dos filmes do diretor. Mas isso não quer dizer que Shyamalan não brinque com elementos que beiram a fantasia. A própria premissa já parece absurda. Um megashow de uma artista pop teen, que na verdade não passa de uma armadilha para a captura de um serial killer procurado que compareceu ao evento com sua filha adolescente. O show e a vida do protagonista escondem uma segunda camada por detrás do que parecem superficialmente ser. Os principais personagens, com exceção da menina Riley, estão interpretando papéis e escondendo suas reais motivações.
A premissa absurda se materializa em um encadeamento de acontecimentos ainda mais absurdo. Shyamalan não se preocupa em calcar nenhuma das ações dos personagens em uma lógica verossímil. Tudo serve ao jogo de gato e rato que se estabelece entre a polícia e o protagonista. É um filme que se reduz até sobrar apenas o pretexto para que a mecânica do thriller funcione, mas aqui, pelo ponto de vista de quem está sendo caçado, de maneira invertida em relação ao que estamos acostumados a ver nos filmes do gênero. Os personagens são pouco complexos, apenas peças no tabuleiro desse jogo. Isso fica claro pela quantidade de clichês do gênero que são colocados em cena sem muito aprofundamento, principalmente nos casos do psicopata traumatizado por uma relação problemática com a mãe e da psicóloga especializada em traçar perfis de serial killers. Esta segunda, inclusive, possui pouquíssimo tempo de tela e funciona mais como uma ameaça invisível que paira sobre a cabeça do protagonista durante todo o filme, até pela associação da figura com a sua própria mãe.
A direção se preocupa em se utilizar dessa lógica simples para gerar efeitos através da maneira como escolhe filmar. Os planos bem fechados marcam os momentos em que Cooper (Josh Hartnett) se sente encurralado e geram uma sensação de claustrofobia também no espectador. Boa parte da história inclusive se passa nos corredores estreitos, banheiros e bastidores do espaço onde acontece o show, comprimindo o protagonista e fazendo com que suas reações precisem ser controladas para que não o entreguem. Isso gera diversas situações cômicas que, aliadas à fisicalidade e às expressões faciais de Josh Hartnett, constroem momentos hilários mas ainda cheios de tensão. Aliás, a performance do ator principal merece destaque. O dilema entre as suas duas vidas, a de bom pai e a de psicopata insensível, é marcado pela interpretação de Hartnett que varia entre simpatia e ternura, e frieza e uma psycho face – bem valorizada pelos enquadramentos de Shyamalan – de dar inveja a Jack Nicholson.
No fim das contas, essa é mais uma obra do diretor indo-americano que com certeza vai gerar polêmica. O descompromisso do roteiro com amarrações realistas corrobora totalmente a natureza farsesca da narrativa, mas vai resultar em uma série de “narizes torcidos” no tempo em que essas amarrações viraram obrigação positivada nos manuais de roteiro vendidos por aí. Shyamalan se rebela, faz seu exercício de gênero e visivelmente se diverte. Seu trabalho tem cada vez mais se tornado pessoal e revelador do momento de vida em que se encontra, expondo reflexões acerca das relações familiares e seus dilemas contemporâneos.
Em um filme que fala sobre paternidade – de uma forma bastante torta, é verdade – e estreia, no Brasil pelo menos, no fim de semana do Dia dos Pais, M. Night escala sua filha em um papel importante, consequentemente faz de seu filme uma espécie de lançamento do trabalho dela como cantora para o mundo e ainda se coloca como o personagem que faz o elo de ligação entre seus protagonistas e Saleka (ou Lady Raven). Um personagem que, mais uma vez em sua filmografia, é quem gira os mecanismos necessários para que as viradas de roteiro aconteçam. Coisa de quem já deixou de ligar há muito tempo para o que vão pensar ou dizer e resolveu curtir as possibilidades que a sua carreira cheia de altos e baixos, aos olhos de parte do público e crítica, lhe proporcionou.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.