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Mais Pesado é o Céu

4.5/5

Mais Pesado é o Céu

2023

98 minutos

4.5/5

Diretor: Petrus Cariry

O trecho da música Calma na Alma, do grupo de rap Cone Crew Diretoria, “Não me limito a laços genealógicos, minha parceria e família se encontra na esquina”, ressoa profundamente comigo. Rompi laços com pessoas que compartilham meu sobrenome e DNA, mas encontrei acolhimento em outras incríveis que cruzaram meu caminho. Esse verso reflete um pouco da minha realidade, e fiquei surpreso ao perceber que o filme Mais Pesado é o Céu tenta me convencer de que esses mesmos versos também traduziam a narrativa de seus protagonistas.

Em Mais Pesado é o Céu nos deparamos com Teresa (Ana Luiza Rios), que se depara com um bebê, adotando-o como filho. E, em seguida, se depara com Antônio (Matheus Nachtergaele), que passa a acompanhá-la. Os andarilhos caroneiros compartilham memórias de um passado em uma cidade submersa para dar lugar a uma represa enquanto encenam uma família improvisada em sua busca por um futuro melhor. Teresa rumando em direção à capital cearense por oportunidades e Antônio a uma empreitada com caranguejos.

Além desse lugar comum e o sonho esperançoso, ambos são um reflexo de diversas pessoas vulnerabilizadas e suas trajetórias. Teresa, jovem e desiludida com a pouca oferta de trabalho e perspectiva de melhora no interior do sertão cearense. Antônio, já trocara sua cidade natal por São Paulo, trabalhando em diversos segmentos. Não melhorou de vida, tão pouco enriqueceu. Compartilhou a experiencia de tantos outros nordestinos que migram para os grandes centros e vivem os versos de Lamento Sertanejo, de Gil. E que, com a pandemia do Covid-19, se enxergava ainda mais solitário e, portanto, decide regressar ao seio de origem em busca de acolhimento. Ambos, cada um à sua maneira, é tão órfão quanto o menino sem nome que compartilham em seus respectivos braços.

É impossível, a meu ver, não querer enxergar aquelas três almas como uma família que foi formada pela força da adversidade. Ainda mais diante do desamparo que a vida na estrada pode oferecer. Na ausência de teto e recursos, é essencial que um seja suporte do outro nesse cenário cujas direções se confundem e o céu parece desabar sobre eles. A figura do menino, ainda de colo, acrescenta vulnerabilidade ao grupo, além de ser um símbolo da esperança e do futuro.

A Mise en Scène elaborada por Petrus Cariry que coloca esses três indivíduos como uma família em nosso imaginário / Foto: Divulgação

A decupagem de Petrus Cariry, que assume as funções de diretor e diretor de fotografia, também ajuda a moldar essa construção dentro de nosso imaginário. A figura dos três compartilham o mesmo quadro em diversos momentos. Ainda que Teresa insista em corrigir que Antônio apenas os acompanha por se afeiçoar pelo menino, é possível perceber o momento em que a mulher passa a ter um novo significado aos olhos do caroneiro. Em seu retorno a uma residência improvisada, acaba deslumbrando uma Teresa Madonna com o menino (como Jesus) no colo, emoldurada pela janela. Os afastamentos entre os dois também é percebido por seus posicionamentos nos espaços, através do uso de colunas e na distribuição entre planos.

Uma Madonna cearense / Foto: Divulgação

A fotografia também é responsável por nos proporcionar a sensação de isolamento que as personagens do filme vivenciam. O cenário da estrada que parece sempre o mesmo, como um labirinto sem paredes. Os planos abertos que revelam o sertão e pequenez destas almas diante da imensidão. Sentimos que estes estão perdidos, vagando em um purgatório formado por asfalto e terra. Dessa maneira, destaco também uma sensação de estagnação do tempo, ou de uma repetição cíclica deste em boa parte da jornada dessas personagens. Essa percepção também me remete ao cinema de Hong Sang-soo, por esse caráter etéreo e existencialista. Divago até sobre uma cena específica, com os três em uma construção abandonada, repleta de máquinas, pouquíssimo iluminada e com a sombra de morcegos. É como se agissem como aqueles animais que, cegos, se deslocam em círculos e agitados. As sombras das grades sobre eles também é uma representação do quanto estão aprisionados naquela realidade.

O filme também abraça o terror em momentos específicos. O ambiente assustador com que se revela a casa abandonada que cogitam se fixar e reconstruir a vida, com a iluminação com fogo, produzindo sombras. Destaque para o som dessa cena, trazendo diversas vozes, aliada a imagem dos retratos nas paredes dos antigos moradores. Tudo se torna aterrorizante. Nos faz sentir medo porque é amedrontador criar raízes. O que se intensifica para seres que estão a tanto tempo na estrada. Estar em movimento faz parte de suas essências, já compõe a ethos. Faz-se necessário se deslocar, ainda que não se saiba para onde.

Em segundo plano na narrativa, paira um medo de um assassino em série. A região em que eles se encontram tem notícia de crimes contra caroneiros, acrescentando um perigo a mais aqueles que se aventuram – ou desventuram – na estrada. O road horror é importado para narrativa e fica ainda mais pulsante pela necessidade de Teresa de ofertar o próprio corpo como uma solução imediata para um problema que se estende: a fome. Mesmo que corra o risco de ser devorada por algum predador da estrada, ela se lança ao perigo após as frequentes frustrações em exercer qualquer outro ofício. É quase impossível não se lembrar de A Morte pede Carona, com Rutger Hauer como antagonista. Principalmente pela conclusão do filme – Apesar de Mais Pesado é o Céu subverter o argumento do thriller americano.

A estrada enquanto um não-lugar material se contrasta com a Jaguaribara do imaginário. A cidade que deu lugar à represa está presente ao longo do filme nas memórias dos personagens e nesse sentimento de não-pertencimento. Esse passado se materializa através de um elemento natural: a água. A lagoa que serve de pano de fundo para diálogos ao fio de água que sai das torneiras, que enche uma banheira, que batiza o menino e que banha a nudez de Teresa sob um olhar predatório. A água circunda esses personagens em seus melhores e piores momentos. É quase como uma guardiã trazida dessa Atlantis cearense. E assim como eles, a água exige movimento. É como se fosse antinatural interromper uma força da natureza. É também o progresso que acabou afogando sonhos e histórias. E que, na narrativa, acrescenta novas camadas de interpretações e poesia que conferem um teor de realismo mágico a Mais Pesado é o Céu.

Jaguaribara, uma Atlantis do futuro ou um passado submerso / Foto:Divulgação

Além dessa trindade de protagonistas, outras três figuras aparecem na história como anjos a guarda. O primeiro deles é Zé Caminhoneiro (Buda Lira), que traz algum direcionamento e esperança a Antônio. Ofertando comida e roupas para o bebê, e dando uma alternativa aos dois adultos, Fátima (Silvia Buarque) foi quem logo deslumbrou uma família naqueles viajantes. Ela, uma sudestina que migra para o nordeste além de uma avó distante de seus descendentes. Fátima também foi responsável por dar um nome ao menino. Chamou-lhe de Miguel.  Já Letícia (Danny Barbosa), atendente na loja de conveniência de um posto de gasolina, se compadece de Teresa e a indica para uma vaga de trabalho. Empática, não julga a caroneira no que diz respeito a forma como conquista algum pouco dinheiro. Essas figuras cruzam a vida dos andarilhos para nos lembrar de que ainda há humanidade no mundo.

Apesar de encontrem algum suporte nessas figuras coadjuvantes, a família improvisada se fortalece sobre ela mesma. Pois, individualmente se encontram ainda mais à deriva. Antônio, por exemplo, se acovarda diante da vida. Independentemente de repetir sobre a empreitada com caranguejos, Antônio apenas faz seguir os passos de Teresa, se revelando um agente passivo por toda sua trajetória. É justamente na conclusão do filme que toma as rédeas da situação e parte para uma ação extrema embora relutante. Teresa, apesar de resgatar a criança do abandono e se identificar como mãe dele, insiste em fazer da criança sua âncora. Apesar disso, é da necessidade primária de alimentá-la que acaba se prostituindo. Em uma última medida, carrega o menino Miguel consigo, abraçando de vez o papel da maternidade enquanto se envereda na vida. O menino, visto sua dependência, carece de ambas as figuras para sobreviver. Entretanto, alterna ora como âncora, ora como cajado, para Antônio e Teresa.

Um resquício de humanidade em três anjos da guarda / Imagem: Divulgação

Mesmo com a chegada dos créditos finais, eu estava estarrecido com a sequência final do filme. Por boa parte de sua duração, a obra de Petrus Cariry se mostra contemplativa e reflexiva. Confesso que em alguns momentos o filme até parece perder o ritmo, mas acredito que seja para nos inserir nesse contexto de deriva em que se encontram os protagonistas. Pois somos envolvidos pela situação marginal e de abandono daquelas três pessoas e ficamos observando imóveis suas andanças em círculos. A vida castigando aquelas almas enquanto observamos o desespero esgotar suas esperanças sentados em uma poltrona confortável. Estar nesse lugar voyeurístico nos provoca incômodo. Pois cabe a nós apenas observar, enquanto os predadores também estão à espreita daquelas presas fáceis. Não seria o tal serial killer fora de campo, alguém que está trabalhando para o deleite dos espectadores?

Enfim, devaneios à parte, Mais Pesado é o Céu é um filme que nos hipnotiza com a decupagem e a fotografia, além de interpretações potentes do veterano Matheus Nachtergaele e da novata Ana Luiza Rios. Todos os atores e atrizes que atravessam essa história deixam sua marca de alguma forma. Quanto a Petrus Cariry, sua competência como fotografo deve ser destacada, assim como sua assinatura enquanto diretor. Seu filme é áspero, naturalista, mas ainda assim contemplativo e visualmente poético. É o primeiro filme do realizador que assisto e já quero conferir seus outros trabalhos. Só poso dizer que sai da sessão da cabine desnorteado com tanta informação transmitida através de som e imagem. E que precisei de um tempo para digeriro filme e conseguir transcrever o tanto que pude observar – e divagar a respeito – para esse texto.

Mais Pesado é o Céu recebeu diversos prêmios dentro e fora do Brasil, com destaque para os de Melhor Direção, Fotografia, Montagem e Prêmio do Júri, em Gramado. O filme está em exibição nos cinemas, onde deve ser preferencialmente assistido.

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