Escolhido para representar a Dinamarca no Oscar de 2024, O Bastardo narra a história do Capitão Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), um veterano de guerra que embarca numa jornada de superação da natureza para colonizar a Jutlândia em nome do rei. A região inóspita era conhecida pelo solo árido e pela presença de tribos de ciganos, consideradas agourentas e párias. Kahlen tem por objetivo estabelecer a agricultura na região para possibilitar a chegada de colonizadores. Caso fosse bem-sucedido, teria direito ao título de nobreza – visto que, apesar de seu prestígio como soldado, seu nascimento deriva de um abuso de um nobre para com uma serva, fazendo dele um bastardo.
A direção de Nikolaj Arcel traz alguns elementos do western para seu drama histórico, adaptado do romance The Captain and Ann Barbara, de Ida Jessen. Um dos temas recorrentes do gênero é, inclusive, a superação da natureza pelo ímpeto da vontade. O diretor explora a vastidão hostil do cenário com planos abertos que amplificam a desolação daqueles indivíduos. Porém, o solo estéril e o clima extremo são apenas parte do problema. O veterano ainda precisará lidar com ataques de saqueadores e com um nêmesis cujos recursos parecem infinitos: De Schinkel, um nobre que pretende anexar a região aos seus domínios.
O Bastardo traz em seu cerne a luta de classes. O protagonista representa a plebe, fruto de uma violência que o torna uma prole ilegítima, buscando seu reconhecimento através de um feito impossível, pois mais impossível ainda parece ser reconhecido pelos de “sangue azul”. Do outro lado, está um nobre cujo valor lhe é concedido desde o nascimento, e cujos esforços se limitam a repetir as mesmas ações abomináveis que os outros de sua classe. Kahlen carrega consigo valores como justiça, determinação, respeito e orgulho. De Schinkel é seu extremo oposto: covarde, débil, cruel e arrogante. Também podemos dizer que este é um duelo entre o empreendedorismo e o conservadorismo, o que torna a narrativa universal e palatável tanto para a Academia quanto para o público médio.
A construção do filme se divide em duas metades. Na primeira, vemos o sofrimento enfrentado por Kahlen e seus companheiros (Johannes Eriksen e sua esposa, Anna Barbara, que também estão fugindo de Schinkel, e Anmai Mus, uma órfã cigana) diante daquele cenário. O frio, a fome e a desesperança contracenam com o grupo, como personagens que coabitam aquela cabana. Já na segunda parte, a presença do abastado antagonista se torna mais frequente, ainda que fora do quadro. Seja pelo medo e desconfiança que sua noiva carrega consigo, seja pelas mensagens levadas por seus serviçais, Schinkel se faz presente. Apesar de sua pequenez enquanto indivíduo, sua cobiça e maldade são imensas. É interessante que a fotografia também divide o filme nessa mesma lógica: a hostilidade da natureza é representada pelo frio, através de um filtro azul, e a hostilidade dos homens, pelo chiaroscuro de sombras e fogo, com predominância do amarelo.
Apesar da carga dramática de ver Kahlen chegar ao seu limite e até mesmo cortar sem questionamentos a garganta de sua única cabra para salvar a pequena criança, o filme começa a se tornar previsível ao se debruçar no maniqueísmo de seu vilão. De Schinkel é apenas detestável. Suas ações causam repulsa, e ele é o epítome do que há de pior na monarquia e na humanidade. Mads acaba sendo o ponto alto da narrativa por conseguir empregar tanta carga emocional no olhar, apesar de sua pouca expressão facial. Seu personagem ainda possui alguns tons sombrios por abraçar a violência para defender suas terras e, em alguns momentos, colocar seu interesse acima do bem-estar de seus ajudantes.
Outros dois acréscimos de valor ao filme são Anmai, que preenche a tela com uma energia cativante, e Anna Barbara, por sua resiliência e potência. As duas personagens femininas conseguem, cada uma a sua maneira, demonstrar mais força e inteligência emocional do que o herói da narrativa. Por fim, acredito que são elas as responsáveis pela perseverança de Kahlen e, também, por sua salvação.
O Bastardo se mostra um filme promissor. Apesar das interpretações e personagens femininas marcantes, o filme não traz nada de novo. Sim, é uma história que nos prende. É de se imaginar que nos encontremos torcendo pelo sucesso do protagonista, visto as injustiças que sofreu na vida e que vem sofrendo ao longo de sua empreitada. É como se sua vitória representasse uma vitória muito mais ampla, transcendendo terras e continentes, a respeito de um grupo oprimido contra um indivíduo opressor. Mas é mais uma narrativa igual a várias outras que já vimos por aí, e longe de ser um “clássico” dentro do gênero.
O Bastardo está em exibição nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.