“Cê tá ligado que eu tenho dificuldade de acordar”
Em O Dia que te Conheci, André Novais Oliveira aposta no simples para abordar questões profundas. E isso se reflete desde a maneira com que posiciona a câmera até o tempo com que se dedica a mantê-la gravando. Acompanhando um dia na vida de Zeca, o que seria um simples acordar com a cara amarrotada pelo travesseiro pode se desenrolar em uma discussão com a devida profundidade a respeito de saúde mental, por exemplo.
Zeca (Renato Novaes) sente dificuldades para acordar. E, mais uma vez, acaba se atrasando para seu trabalho como bibliotecário em uma escola particular em Betim, uma cidade próxima de Belo Horizonte, onde reside. Ele acaba sendo comunicado de sua demissão por Luísa (Grace Passô) que oferece uma carona para sua cidade. No trajeto, ambos acabam esticando a conversa e compartilhando experiências.
É interessante como o diretor se dedica em mostrar toda a rotina matinal de Zeca, desde o abrir os olhos até a chegada ao local de trabalho. Tal qual Ozu, o diretor não se incomoda em deixar a câmera ligada, estática, capturando o cenário quase que em sua totalidade, para que participemos de cada ação de seu protagonista. Pode parecer enfadonho e desnecessário, ainda mais quando estamos observando cenas que parecem tão banais. Mas cada uma delas se mostra essencial por contribuir na construção de um julgamento sobre aquele indivíduo.
Precisamos nos lembrar que Zeca não se parece com os protagonistas que estamos acostumados a ver em tela nos filmes de comédia romântica. Zeca é um homem negro, por volta de 40 anos, cabelos e barba grande e visivelmente acima do peso. Seu andar desengonçado e seu pedido para que seja acordado contribuem para que seja depositado sobre ele a imagem de um homem preguiçoso. Tirando a questão da cor da pele, já compartilhei da mesma experiência e julgamentos que Zeca. E é dessa forma como um homem gordo é visto na sociedade: preguiçoso e desleixado. É genial como André Novais de Oliveira instiga esse julgamento até subvertê-lo no final.
Para além dessa discussão estética, o diretor também aborda sutilmente outros tabus e coloca em prática suas pequenas denúncias. A mais didática delas a respeito das condições do transporte público e deslocamento da classe trabalhadora. Ali sim parece que vivemos mas não estamos acordados. Mas com diálogos ácidos ele também fala da ausência de profissionais negros em ambientes educacionais, além de mostrar a ignorância a respeito de importantes figuras históricas. A grande jogada mesmo diz respeito ao desconforto de se falar sobre saúde mental, e como o cuidado – ou a falta – com ela acaba por impactar em outras instâncias das vidas das pessoas.
A conversa e os silêncios presentes na dinâmica entre Luísa e Zeca nos fazem torcer pela aproximação entre esses dois. Zeca, como eu disse, é desengonçado. Também bastante tímido, mas isso também acrescenta a ele um carisma escondido e, ao mesmo tempo, cativante. Luísa já é mais espontânea e atirada. Todos, absolutamente todos, dentro e fora da narrativa, entenderam que Zeca iria transar em determinado momento. Menos ele (risos). E torcemos por esse casal quase que instantaneamente. Seja pelas vivências que compartilham e que fazem de um refúgio para o outro, seja pelo prazer em ver corpos fora do padrão midiático se amando em tela.
É estranho só que o romance tenha sido curto em uma história com pouco tempo de duração. Ainda mais quando o filme parece ter sido vendido como uma comédia romântica. O meu incômodo talvez nem se encontre na falta de continuidade da história. Claro que eu queria saber mais sobre Luísa, e mais ainda sobre o que rolou depois desse afeto de uma noite. Será que Zeca acordou pra vida? Mesmo assim, pincelar a respeito de saúde mental, racismo, jornada do trabalhador e corpos fora do padrão em tela pode ter sido uma ideia certeira. Vamos deixar só plantadas as sementes desses assuntos e deixar com que elas germinem em uma mesa de boteco. Dessa forma, O Dia que te Conheci cumpriu bem seu papel.
O Dia que te Conheci estreia dia 26 de setembro nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.
2 comentários em “O Dia que te Conheci”
Fico muito feliz quando o crítico assistiu o mesmo filme que eu. Parabéns pela análise concisa e generosa.
Fico muito feliz em saber que o texto tenha sido um refúgio para o leitor assim como é para mim. Se tiver algum acréscimo, fique a vontade para compartilhá-lo conosco aqui.