O terror, assim como a comédia, é um gênero que permite tratar por vias não tão diretas temas sociais e medos coletivos ou de grupos minoritários (Questões raciais em Corra!; o medo da bomba atômica em Godzilla). Por outro lado, também já foi veículo de cartilhas mais conservadoras – o subgênero Slasher, em boa parte de sua filmografia, condenava `mortes violentas adolescentes que ousavam ter relações sexuais, restando como sobrevivente a jovem virgem, a final girl. Os “monstros” estão relacionados mais às questões humanas do que às suas aparências.
A Herança traz uma história clássica de retorno ao seio familiar. No longa, Thomas (Diego Montez) retorna para o Brasil junto de Beni (Yohan Levi), seu namorado alemão, após a notícia da morte de sua mãe. Em Berlin, seu visto de permanência havia sido negado mais uma vez. No Brasil, descobre ser herdeiro de uma casa colonial no interior, e de possuir duas tias. A curiosidade a respeito de sua origem é influenciada pelo acolhimento das irmãs de sua mãe (Analu Prestes e Christina).
O longa explora o sentimento de não pertencimento de duas figuras forasteiras: Thomas enquanto em terras germânicas, e Beni que, pousando em terras tupiniquins, recebe um tratamento diferenciado dos familiares de seu afeto e começa a desconfiar das reais intenções por trás de toda a atenção direcionada ao herdeiro. As diferentes direções em que esse sentimento é trazido traz uma dinâmica reflexiva. A parte da trama, o não pertencimento de Beni pode ser relacionado às questões de heteronormatividade, enquanto a breve passagem de Thomas na Alemanha sugere uma possível xenofobia institucional que aponta para esse papel de órfão em que se enquadra o personagem.
A distância da figura materna e seu repentino óbito dão urgência à latente carência de colo materno. O filme permite oferecer dois caminhos para preencher esse vazio. O primeiro deles se manifesta na advogada, Dra. Vera (Ana Carbati), que acolhe maternalmente o rapaz. Em outro polo, suas tias, que exacerbam o sentido de cuidado, oferendo registros de um passado esquecido e banquetes com receitas de família.
Para além da figura materna, existe também uma outra que lideraria esse microcosmos matriarcal: a avó – que se mantém presente através de um retrato austero no alto da parede. Através dela, o filme acaba de invocar a figura da bruxa, um arquétipo clássico dos contos de terror. Sem a pretensão de discutir acerca do feminino ou se aprofundar no ocultismo, A Herança se concentra em desenvolver o ritual de ressuscitação dessa ancestral através de uma alimentação umbilical – mais um aceno à maternidade. Com uma maquiagem de deixar inveja produções estrangeiras, o longa se inspira na caracterização dos clássicos de terror de Mario Bava.
Existe um apreço genuíno em construir a tensão através da exploração sensorial e visual do cenário. A casa antiga com pouca iluminação natural é um portal para o século anterior. O som do encanamento enferrujado e madeira rangendo ajudam a compor o ar sobrenatural em que o filme se sustenta. Se na forma o longa se eleva, é em seu roteiro que apresenta suas vulnerabilidades. A relação dos empregados com a seita familiar não é sequer citada. Se a servente emudecida é um ventre para a concepção do novo escolhido, não existe qualquer explicativa para a existência do caseiro ameaçador vivido pelo antigo vocal do Matanza, Jimmy London.
Outro problema no roteiro é não conseguir se aprofundar na discussão a respeito da ameaça do conservadorismo sobre a vivência queer. Não que precise de uma justificativa para dar protagonismo a um “casal final” (ou final couple) gay. Mas, durante uma cena ritualística envolvendo um casal heteronormativo é entoada a frase “você vai se tornar o homem da casa”. Dado o contexto da cena, cria-se uma expectativa de que uma denúncia, ou questionamento, a respeito à “cura gay” será incorporada à narrativa. Entretanto, o não se enveredar por esse caminho é apenas uma expectativa frustrada.
A Herança é vendido como um terror queer com toque de melodrama. Apesar de não ter pudores em trazer o sexo, o filme parece conformar o seu discurso em cima disso. É como se a escolha do casal na narrativa se contentasse com o “porque não?”. Apesar dos inúmeros acertos técnicos – figurino, design de produção, maquiagem, efeitos visuais, captação e mixagem de som impecáveis – o roteiro, tanto pelas lacunas de texto e subtexto, acaba se revelando o calcanhar de Aquiles da produção. Um projeto com potencial muito maior do que o resultado revela.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.