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Apocalipse nos Trópicos

4/5

Apocalipse nos Trópicas

2021

110 minutos

4/5

Diretor: Petra Costa

“O Brasil é do Nosso Senhor Jesus!”

Eu já apreciava o cinema documental intimista de Petra Costa desde Elena. A maneira com que transfere sua subjetividade para sua obra é uma das características de seu cinema. De certa forma, Elena diz mais sobre Petra do que de sua irmã. O trabalho da documentarista é, acima de tudo, uma ode à memória. Uma busca por deixar vívida uma imagem que corre o risco de apagar ou pior, ser corrompida de alguma maneira. As figuras femininas também eram centrais em seus filmes. Até Democracia em Vertigem contara com a ex-presidente Dilma Roussef no epicentro do evento golpista. Com o anúncio de Apocalipse nos Trópicos, me questionei onde o feminino seria encaixado nessa narrativa cujos personagens diante a câmera são homens. Finalmente me recordo que neste, a fé (materializada na religião) é a verdadeira protagonista do filme. E a denúncia da diretora está em como esse sentimento é usurpado por alguns e se torna instrumento de manipulação política para a obtenção e manutenção de seus interesses.

É acompanhando o pastor Silas Malafaia, que Petra constrói seu filme. Enquanto uma figura recorrente nos bastidores da eleição e (des)governo de Jair Bolsonaro, o líder religioso é responsável por movimentar sua massa de fies de forma a motivá-los a apoiar o militar. Colocando-o como um defensor dos valores tradicionais e dos bons costumes “ameaçados” pela esquerda, Malafaia atua como seu mais influente cabo eleitoral. Ele inclusive deixa bem claro seu poder ao repetir em diversos trechos a parcela de evangélicos entre o eleitorado brasileiro. O pastor se coloca, inclusive como porta voz entre ungidos e justifica cada um de seus posicionamentos execráveis com fragmentos de textos religiosos invocados de maneira conveniente.

Jair Bolsonaro, candidato à reeleição em 2022. Imagem: Divulgação

A diretora faz questão de sublinhar os interesses escusos e a volubilidade com que Malafaia se movimenta na esfera política. Trazendo, por exemplo, o registro do apoio do pastor, junto de outros, a Lula em seu primeiro mandato como presidente, quando este promulgou leis que facilitavam a abertura de igrejas e concedia a elas benefícios. Mas Petra faz apontamentos também a outros líderes evangélicos, apontando aqueles que passam a integrar a política brasileira compondo a bancada evangélica e apoiam os projetos “a favor da vida” de seus correligionários ou de aliados da bancada da bala – por mais contraditório que seja. Ela envereda sua denúncia ao projeto de poder desses grupos evangélicos que se baseia na Conquista dos Sete Montes, sendo a política o (monte) mais instável.

Diante da influência da religião na política brasileira nos últimos anos, Petra também nos aproxima desse eleitorado que é influenciado por seus falsos profetas. Sem perder a empatia, a documentarista expõe a vulnerabilidade desses que são convertidos em massa de manobra. Em geral, são pessoas de baixa escolaridade, que não possuem acesso ou discernimento suficientes para investigar as informações falsas às quais são expostas. Inclusive porque são motivados pela emoção e pela defesa de seus valores religiosos. Ainda assim, Petra não deixa de escancarar o mau-caratismo daqueles que compartilham dos mesmos interesses e valores deturpados. A diretora também faz questão de mostrar o quão hipnotizados diversas pessoas – inclusive com acesso à educação – ficaram. O delírio coletivo em que ingressaram as transformou em uma horda zumbificada de adoradores de pneu pedindo intervenção militar.

No que diz respeito à guerra religiosa em que a política brasileira acabou enveredando durante as eleições, Petra também coloca a vulnerabilidade com que a campanha de Lula se encontrava e a importância decisiva do apoio de outros líderes evangélicos ao ex-presidente. Não que exista qualquer pretensão à neutralidade em seu documentário. A diretora deixa claro seu questionamento sobre a influência da religião na política. Sua pessoalidade é percebida desde a narração em off à maneira com que conduz a narrativa. Mas traz também as demais interferências que fragilizaram o rito democrático em 2022, como as abordagens policiais em estradas de acesso às zonas eleitorais.

O apoio de líderes evangélicos progressistas à campanha eleitoral de Lula. Imagem: Divulgação.

Como em seu documentário anterior, a cineasta faz uso de uma montagem construtivista, propondo o choque de imagens como dispositivo narrativo para reforçar seus questionamentos e denúncias. Petra não renuncia às notas de poesia com que conduz sua narrativa. Um exemplo disso é o registro dos profissionais de saúde, desesperados pela ausência de cilindros de oxigênio para dar suporte às vítimas do coronavírus, como trilha sonora da imagem de um céu azul. Visualmente, a diretora nos transporta para uma altitude onde o ar é rarefeito e a asfixia é inevitável. Ou quando nos tira do caminho da luz – e da razão – quando ilustra o capítulo Deus nos Tempos do Cólera, a respeito da condução da pandemia. Em outro momento ela desliza a câmera diante da pintura do Juízo Final, dando diferentes contornos ao Jesus que retorna, e outras interpretações sobre o último livro sagrado.

Apesar dos diversos acertos da maneira com que conduz seu documentário, ele muito se aproxima do formato utilizado em Democracia em Vertigem. Ainda que esteja muito mais debruçada sobre as ações de um personagem específico e na maneira com que elas influenciam o jogo democrático, ficamos com a sensação de estarmos assistindo à um apêndice de seu trabalho anterior. Apocalipse nos Trópicos é muito mais abrangente que Democracia em Vertigem. Ele faz apontamentos que vão além do recorte temporal da última década ou do território brasileiro. Seu estudo sobre a influência religiosa faz conexões com interesses do governo americano na política da américa latina e na Teologia da Prosperidade, modelo de evangelização utilizado por Billy Graham, o Papa Protestante. Por mais que seja um deleite ver a cineasta escancarar o quão patético é Bolsonaro e como não passa de um fantoche de Malafaia, talvez o maior feito da realizadora é não ter vomitado estando tão próxima dessas figuras abjetas.

Apocalipse nos Trópicos foi exibido no na Mostra Première Brasil: Competição Longa-Metragem Documentário da 26ª edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro – Festival do Rio

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