“Amar significa esperar pela felicidade”
Meu primeiro contato com o cinema do mauritano Abderrahmane Sissako foi ainda na adolescência, quando me deparei com o dvd de Timbukto na prateleira da locadora que viria a me conceder meu primeiro emprego e, de certa forma, onde a semente da crítica cinematográfica iria ser plantada. Estava estimulado pela experiência com um cinema ainda “exótico”. Nunca havia tido contato com um filme do continente africano e, para falar a verdade, não possuía nenhum conhecimento a cerca daquele país saariano. Acabei encantado com a poesia de um jogo de futebol sem bola, uma tentativa de escape e superação da repressão do extremismo religioso. Muitos anos e filmes depois, tenho a oportunidade de assistir uma obra de Sissako, agora na tela grande.
Black -Tea – O Aroma do Amor nos coloca diante de Aya Yahou (Nina Melo), uma marfinense que se recusa a proceder com um casamento por aparências com o prefeito de sua cidade e migra para uma comunidade africana em Guangzhou, na China, onde trabalha em uma casa de chá. A dinâmica com Cal (Han Chang), dono da loja, deixa implícito um interesse mútuo entre eles. Apesar de existir um tabu a respeito de relações amorosas entre chineses e estrangeiros naquela comunidade cosmopolita (quatro línguas são faladas: mandarim, francês, árabe e português) a distância entre Aya e Cal diminui a cada xícara de chá que é compartilhada.
Existe toda uma poesia da imagem durante a experimentação dos chás. Os planos detalhes na cerâmica e o primeiro plano empregado no absorver do aroma permitem com que o espectador compartilhe daquela experiência. A cerimônia do chá é inebriante por si só. Mas a trilha extra diegética ao som do erhu – instrumento de corda chinês semelhante ao violino – conferem uma nova camada sensorial à cena. O prazer compartilhado é como uma consumação de uma paixão que, até então, reclusa. Enquanto efervescente apesar de comprimida em pudores e porões, o filme lembra outro potente melodrama: Amor à Flor da Pele, de Wong Kar Wai. Contudo, esses corpos superam a barreira do proibido e se aproximam. E, em uma declaração não dita, se consolida no toque de ombros nus durante outra preparação do chá (em uma cena que remete à outra famosa envolvendo uma roda de oleiro e ao som de Unchained Melody).
Sissako consegue reunir seu casal de personagens com elementos que transcendem a bebida que os conecta. Através de uma fotografia que explora reflexos em vidraças e a filmagens por trás de janelas, as silhuetas de ambos são reunidas no mesmo quadro. Ou então, compartilham do mesmo efeito de luzes borradas por lentes e vitrais. Em uma visita aos campos de plantio de chás, o diretor ainda nos oferece uma cena que se desconecta do cenário comprimido dos ambientes apertados e escurecidos do interior da loja. O verde vívido da vegetação aliado ao amarelo da presença inusitada de uma borboleta confere um tom onírico à cena – muito próximo à experiência do jogo em Timbuktu.
O poder de encanto do filme se perde conforme a paixão proibida passa a ser experimentada. O tempo que se esticava durante a realização da cerimônia do chá volta a ser o tempo terreno. O imaginário construído sobre aquele homem de poucas palavras e gestos delicados é destruído pela imagem de seu passado. Quando visitamos seu passado, nos deparamos com aspereza no trato de sua esposa anterior e com um caso extraconjugal. Cal se torna um homem como outro qualquer. E sua imagem perante nós, rachada tal qual o para-brisas de seu carro. Ainda que sua jornada de reconexão com a filha – fruto do adultério – tente mostrar seu ímpeto em consertar os erros do passado, uma cerâmica quebrada sempre possuirá marcas. É bonito seu reencontro. Principalmente pelo carinho com a filha deixar o cuidado com o aparelho de chá em segundo plano. Inclusive porque ele nos ensina que o chá é experimentado em três goles: Apreço ao ambiente, ao sabor e, por fim, ao afeto.
Na sequência final é que Black -Tea – O Aroma do Amor ganha um sabor acre. Na tentativa de denunciar preconceitos que insistem em se manter presente, o roteiro ganha uma cena de jantar com diálogo panfletário. Existe o retorno à covardia de Cal, que novamente tem sua superfície rachada. Também emergem à superfície desejos e questionamentos. Ainda que alguns sejam surpreendentes, o que salva a cena é o canto de Feeling Good, de Nina Simone, em Bambara, língua falada no Mali.
Black -Tea – O Aroma do Amor nos oferece um melodrama poético com reflexões a respeito de aparências e costumes. Com o aroma do chá de pano de fundo, ele também discursa a respeito de superficialidades. Pois, no fim, o chá é apenas chá. O maior significado de sua cerimônia se deposita no encanto da reunião. Em unir duas pessoas para um instante de afeto.
Black -Tea – O Aroma do Amor foi exibido na 26ª Edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.