“Chupa, câncer!”
É verdade que nem todas as produções audiovisuais que têm o diagnóstico de câncer como ponto de virada de seus protagonistas precisam enveredar por um retrato da Via Crúcis pela qual precisam percorrer durante o tratamento. As sessões de quimioterapia, os enjoos constantes, fraquezas que evoluem para desmaios e, é claro, a perda de cabelo são momentos de sofrimento que oferecem grande peso dramático para a narrativa. Ainda assim, uma parcela significativa das produções que tratam desse tema se concentra na beleza do viver apesar da brevidade. O que costura, por exemplo, filmes como Antes de Partir, A Culpa é das Estrelas, Um Amor para Recordar é que, apesar de inserirem doçura no encanto pela vida ou a redescoberta dele, fatalmente os personagens têm seu encontro com a morte. Câncer com Ascendente em Virgem já promete uma ruptura com essa tradição por ser inspirado no blog Estou com câncer, e daí?, da produtora Clélia Bessa. Ela ainda está por aí trabalhando muito e esbanjando vitalidade. Falo como testemunha. Já fiz a cobertura de alguns festivais de cinema ao seu lado e, sequer fazia ideia de que ela pudesse ter passado por isso tudo.
Câncer com Ascendente em Virgem é mais uma jornada de redescoberta de si e de sua rede de apoio do que sobre a descoberta do câncer. Claro que, assim como em toda história cuja existência de uma doença é um elemento basilar, o experimentar de diversos sentimentos e medos farão parte desse processo. Mas é importante destacar que, ainda que a doença exista ao longo de toda a narrativa, a protagonista da história sempre foi Clara (Suzana Pires). A sua subjetividade está no centro da história. Isso pode ser notado pela narração em off – que inclusive, faz uma ponte com a pessoalidade do blog – e pelas escolhas visuais que dão forma ao longa-metragem. A direção do filme faz questão de centralizar Clara no quadro e, mesmo que explore uma possível vertigem ou desequilíbrio, a imagem da personagem nunca fica fora de foco. Essas escolhas formais também permitem que o espectador consiga tatear um pouco do estado emocional de Clara, como é o caso da desconexão da realidade no comunicado do diagnóstico e de uma perda próxima.
Como falei anteriormente, o filme não se restringe à luta contra o câncer. Ele explora todas as instâncias da vida de Clara. Afinal, a vida não poderia parar. A dedicação da personagem com sua profissão e os dramas da maternidade também estão presentes. Até as inseguranças pregressas com a vida, ao se comparar com o ex-marido também estão ali. Câncer com Ascendente em Virgem é, acima de tudo, um filme sobre a experiência feminina. Dessa maneira, não poderia deixar de lado inquietações a respeito do próprio corpo que precedem o câncer. Principalmente por esbarrar na vivência de uma mulher de 50 anos. Seu maior triunfo é a maneira leve e positiva com que perpassa cada uma das dificuldades, sejam elas as que fazem ou não parte da rotina de uma paciente oncológico. O humor é bem utilizado, mas de maneira que não relativize as dores da personagem. Pelo contrário, existe sensibilidade em trabalhá-las, mas sempre apontando os caminhos para a superação. E o maior deles é a sororidade.
A presença da rede de apoio de Clara permitiu ao roteiro mostrar como o câncer é capaz de adoecer também o entorno do paciente, mas, ao mesmo tempo, provar que não é uma luta que se precisa vencer sozinha. Aliás, é uma luta que não tem perdedores – sempre bom deixar claro. O apoio de sua filha adolescente, Alice (Nathália Costa), de sua mãe “jovem” mística, Leda (Marieta Severo, simplesmente perfeita!) e suas amigas Paula (Carla Cristina Cardoso) e Dircinha (Fabiana Karla) são essenciais durante toda sua trajetória. O banho de mar que precede uma cirurgia é uma das cenas que mais celebra esse abraço. Não poderia deixar de falar do momento em que a perda do cabelo é assumida. Ao contrário de uma cena famosa do passar da máquina no couro cabeludo, marcada por choro e uma música melancólica, essa vivência de Clara é marcada por alegria e muta coragem. Principalmente por emendar em uma sequência em uma loja de perucas de deixar com inveja as personagens de Cameron Diaz e Christina Applegate em Tudo para Ficar com Ele.
Não há dúvidas que Câncer com Ascendente em Virgem é um filme que pretende brindar à vida. Ele lembra a todos de que é necessário fazer uma pausa na rotina e se permitir realizar aquele projeto que está engavetado faz um tempo, sobre tirar do armário aquela roupa que você acha que não tem mais cabimento usar, sobre amar e aproveitar o próprio corpo, cada parte dele. E sobre isso, o filme ainda consegue ser muito pertinente. O jeito com que retrata as mudanças que a doença pode provocar na aparência é feita de maneira cautelosa e empoderada. Nada de explorar a autopiedade ou pena alheia. A direção de Rosane Svartman é bastante assertiva nesse sentido. Dar apoio não tem nada a ver com pena. Assim como ser forte também não significa não poder chorar ou passar por isso sozinha. E, os depoimentos de personagens reais trazem uma outra camada. Acaba que o filme encontra a medida certa entre ser íntimo e, ao mesmo tempo, universal.
Câncer com Ascendente em Virgem foi exibido na 26ª Edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro (Festival do Rio).
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.