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O Quarto ao Lado

4/5

O Quarto ao Lado

2024

110 minutos

4/5

Diretor: Pedro Almodóvar

“Como das outras vezes que enfrentei a morte, eu não quero estar sozinha”

Quando lembro dos filmes de Almodóvar, imediatamente remeto à sua estética ousada, onde cores saturadas invadem minha íris e diversas texturas dividem a atenção com temas instigantes e complexos. O diretor espanhol não teme pesar a mão nas emoções que pretende provocar, tão pouco teme ser taxado de cafona. Pelo contrário, faz questão de enveredar pelo melodrama oferecendo de cortesia um buquê sensorial ao seu espectador.

Em O Quarto ao Lado, o reencontro de duas escritoras acaba sendo pautado sobre a iminência da morte. Martha (Tilda Swinton) está em um leito hospitalar quando recebe a visita da antiga colega de revista, Ingrid (Julianne Moore). A reaproximação acaba culminando no pedido de assistência para eutanásia em uma viagem a um lugar que não traga qualquer senso de familiaridade para que lembranças não sejam maculadas. Com uma simples pílula comprada na deep web, Martha pretende “vencer” o câncer assumindo a gerência pelo fim de sua vida. O conforto virá na presença da amiga, que compartilhará do momento no quarto ao lado.

Almodóvar coloca duas figuras complementares e, ao mesmo tempo, diametralmente opostas reunidas na mesma trama. Ingrid acaba de escrever um livro que se debruça sobre seu sentimento de não aceitação da morte. Em uma outra perspectiva, Martha confessa que, depois receber o diagnóstico, não consegue ver sentido em sobreviver à doença. Isso também se reflete no figurino de ambas, pois a personagem de Tilda é aquela que explora cores saturadas e vivas, trabalhando uma palheta de cores complementares que a fazem se destacar no cenário. Até mesmo a escolha do batom vermelho para o momento do beijo da morte sugere que Martha não é alguém que escolhe passar desapercebida. Ingrid, por outro lado, aposta na palheta de outono e em estampas xadrez. Toda construção de sua personalidade sugere alguém mais contido. Se a roupa expressa a personalidade dessas mulheres, o mesmo pode se dizer de seus lares. Novamente, a vivacidade pode ser mais bem sentida na casa de Martha, onde o diretor pode explorar toda sua estética Kitsch.

Martha e Ingrid, opostas e complementares. Imagem: Divulgação

Além das coprotagonistas, O Quarto ao Lado apresenta outra dualidade, mas que se desenvolve ao longo de toda história rememorada por Martha: amor e morte. Esses dois elementos são basilares no desenvolvimento da personagem. Martha, ao longo de sua carreira, flertava com a morte enquanto trabalhava como correspondente de guerra. Seu primeiro amor, o pai de sua filha, voltou da guerra como um fantasma. E sua filha, ao saber do evento da morte do pai, se coloca também como uma figura fantasmagórica que assombrava sua mente corrompida. Ao mesmo tempo, Martha nunca moderou suas paixões, não importa a direção que na qual se enveredasse. Se permitindo gozar de suas paixões, ainda que por uma única noite na Nova York dos anos 80. Até sua ficção nunca publicada que diz respeito a um casal homessexual que escolhe permanecer na zona de conflito é uma comunhão do amor com a morte.  Seu espírito livre é o que gerou o afastamento com sua filha, uma agente de músicos clássicos. Talvez a comunhão de ambas só tenha sido possível metaforicamente, através da trilha de quarteto de cordas no leito de morte.

Em muitos sentidos, o diretor conversa com o público através de seus personagens. Em um momento específico, faz um comentário a respeito da destruição do planeta com a hegemonia da filosofia neoliberalista e do avanço da extrema direita através de Damian (John Turturro), uma figura em comum entre Ingrid e Martha. Apesar disso, seu filme se concentra em discussões mais existencialistas. O tom mais intimista dessa sua produção não chega a se tornar pesada, inclusive pelas reflexões ácidas e, de certa forma, bem-humoradas de Martha a respeito da vida. O diretor acaba questionando ambas as formas de morte em vida, seja sendo um fantoche da produtividade ou pela negação das paixões por qualquer senso de pudor ou comedimento. Ao seu modo, ele permite com que essa experiência de dividir os últimos momentos da Martha interfira na forma de enxergar a vida por Ingrid. É interessante como a personagem começa a abraçar os tons da amiga, seja no vestuário ou nas interações sociais. E a maneira com que lidamos com os desvios de rota que a vida nos proporciona também pode ser objeto de reflexão, tanto no lugar daquela que foi a quarta opção para companhia, como por aquela que queria alguém no quarto ao lado, mas alojou a confidente no quarto abaixo. A única certeza, por fim, é a morte.

Em sua primeira aventura em solo americano, o diretor faz escolhas acertadas para dar vida às suas personagens. As veteranas vencedoras do Oscar nos conquistam em cada frase e gesto que manifestam. Julianne Moore traz uma ternura acolhedora na pele de Ingrid, da mesma maneira que Tilda Swinton é fascinante no modo como imprime energia e ímpeto à sua personagem em seus últimos momentos. Mas, apesar dessa sinergia existente entre essas duas forças artísticas, existe uma carência que persiste ao longo de todo filme. Por mais que a morte seja uma temática densa e impactante, o longa em língua inglesa de Almodóvar acaba sendo tão frio quanto o cemitério que recebe a neve. Nessa obra, sentimos mais proximidade com o existencialismo de Bergman ou Kieslowski. Claro que enxergamos a mão do espanhol, ele parece mais comedido em suas abordagens. Pode ser a ausência de uma língua latina, ou o cenário taciturno da costa leste americana, mas apesar do intimismo e maturidade, o gosto que O Quarto ao Lado deixa é de um Pedro Almodóv.ar que desbotou.

O Quarto ao Lado foi exibido na Mostra Panorama Mundial da 26ª edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, o Festival do Rio.

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