“A Cigarra morre de tanto cantar”
Os filmes do velho-oeste americano para além da determinação do indivíduo, também discursavam a respeito do progresso. Essa palavra que era entoada por grandes concentradores de capital, falava sobre o ideal civilizatório que alcançaria a imensidão árida e selvagem. Por traz do projeto de desenvolvimento, uma empresa se destacaria: a Union Pacific, que cruzaria o país de leste à oeste. A empresa seria também a principal força de construção e manutenção econômica das cidades por onde sua linha férrea passaria. Mas todo esse progresso trazido pelos milhares de quilômetros de ferrovias iria cruzar terras de povos originários, uma marca de ferro e sangue naquele solo empoeirado. O sofrimento e a exploração de muitos sempre foi o custo para o lucro de poucos. E em todos os cantos do mundo.
O Silêncio das Ostras traz a dinâmica de uma família cuja pouca estrutura gira em torno da atividade de mineração em um pequeno vilarejo na região de Brumadinho. Um pai já debilitado pelo trabalho insalubre, uma mãe sobrecarregada por responsabilidades e sonhos abandonados e várias crianças cujo horizonte se limita a trabalhar para a grande empresa e, assim, dar continuidade nessa cadeia de exploração. O filme nos permite analisar esse microcosmo através do olhar de Kaylane, uma menina que experimenta o passar do tempo em um ritmo diferente do imposto pela produtividade do capitalismo e nutre uma curiosidade genuína pela vida através dos pequenos artrópodes que encontra por suas andanças ou que invadem sua humilde e vulnerável moradia.
Nos primeiros dois terços, boa parte das interações se concentram entre a menina e sua mãe, ainda que permita figuração dos demais membros da família. Pelos olhos inocentes da criança somos alimentados de vida diante da pouca perspectiva de sua mãe. A mineradora é outro personagem que se mantém onipresente ainda que fora do quadro. O som das máquinas se perpetua ao longo da narrativa, e quando se silencia, a corporação se manifesta através das consequências de sua atividade ou personificada na figura de seu gestor. A negação de qualquer aumento na remuneração é percebida como projeto de domínio quando avistamos a visita periódica do “circo” mambembe e suas atrações. A ilusão de um momento de felicidade hipnotiza aquelas almas condenadas em corpos castigados.
A obra de Marcos Pimentel consegue costurar entre o naturalismo e o realismo mágico quando retrata a vivência da família em paralelo à perspectiva de Kaylane. Estruturada sobre o formalismo da fotografia de Petrus Cariry, percebemos a erosão sofrida pelo meio-ambiente e aqueles indivíduos provocada pela mineração predatória. O olhar do diretor de fotografia transforma devastação em poesia. Ele consegue captar a superfície erodida da cútis daquelas pessoas e das paredes daquela casa com a mesma intensidade com que captura a erosão provocada pelas escavações naquele cenário montanhoso. O sufocamento daqueles cômodos que acolhe tantos filhos também é um contraste ao isolamento daqueles indivíduos naquela imensidão. Por fim, Cariry também consegue transformar em pintura a correnteza de lama que invade rios e mar após o desastre.
No longa também experimentamos a passagem do tempo com a mesma elasticidade de Kaylane. Apesar do filme se passar em décadas diferentes, temos a impressão de que o tempo segue um fluxo cíclico em que a estagnação da vida dos moradores daquela região não corresponde às expectativas de melhora das publicidades sobre o desenvolvimento. Pelo contrário, o que era precário se torna ainda mais precário. E a única mudança sentida se encontra nas perdas que são colecionadas pelo caminho. Com a saída sequencial dos irmãos para atividades em novas minas, restam apenas lembranças do passado nas paredes da casa. Apesar da estranha beleza com que as diversas maquetes e intervenções com que esqueletos de várias espécies ilustram as paredes, são apenas uma representação daquela natureza morta. Do lado de fora da casa, uma cidade fantasma. Apenas o som do metal oxidado dos moinhos de vento ou das perfurações e escavadeiras.
O filme de Pimentel faz um aceno ao cinema novo através de sua denúncia política que se permite ao experimentalismo por trazerem sua conclusão um caráter documental. Alguns elementos narrativos e formais conectam O Silêncio das Ostras a Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Além de retratar a saga de uma família, contamos com a presença do som do carrinho de boi e de Ostra, um vira-lata adotado pela protagonista muito semelhante à Baleia, mascote do filme clássico – ambos com nomes de animais marinhos. Também observamos as violências imperialistas e a revolta do colonizado advindos da estética da fome, da mesma maneira que percebemos o escapismo de Kaylane como pertencente à eztetyka do sonho. Seu acolhimento pelo grupo indígena abriu espaço no roteiro para que personagens não-ficcionais pudessem dar seu depoimento para câmera, contando um pouco da história de sobrevivência e resistência.
Apesar do ritmo lento em que o filme se desenvolve, somos encantados pela forma de enxergar o mundo que a pequena protagonista nos permite compartilhar. A beleza com que experimenta a vida nesse ambiente acre nos permite nutrir um resto de esperança. Ainda que compartilhemos da desistência de sonhos e horizontes abreviados dos demais membros da família. Mesmo que usufrua da qualidade do trabalho de Bárbara Colen em dar vida à Kaylane adulta, esse novo momento do longa acaba desbotando. É como se o resquício de magia se sustentasse apenas na infância, e a vida adulta só reservasse desespero e desilusão. Além do mais, ao insistir na continuidade de uma história pós-desastre em prol de um formato que tende ao documental para sublinhar sua denúncia, a narrativa parece perder seu rumo, tal qual a personagem que, mediante o mar de devastação, perde seu referencial.
O Silêncio das Ostras foi exibido na 26ª Edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.