Um trecho na Bíblia diz respeito à quarentena de Jesus no deserto, guiado pelo Espírito Santo, para que fosse, então, tentado pelo Diabo. Aqui, o cordeiro de Deus, um homem de carne e osso, precisa provar seu valor, ainda que, em seus primeiros passos, seja a efígie da bondade, pureza e benfeitoria.
Sariri é um longa que nos apresenta dois pontos de vista apesar de receber o nome de apenas uma protagonista. No caso, Sariri é uma menina se vê encurralada após a chegada de sua primeira regra. Dina é irmã de Sariri e está grávida de seu primeiro filho, encurralada por um futuro limitante de um matrimônio arranjado. Ambas vivem em La Lágrima, um pequeno vilarejo deslocado do mundo pela vastidão árida do deserto chileno. Como tradição, após menstruarem pela primeira vez, as meninas-moças devem se isolar no deserto para não despertar a ira de uma entidade sobrenatural feminina que supostamente habita a mina que é o principal meio de trabalho dos homens da região. Quando retornarem, essas jovens devem seguir em um casamento arranjado e viver sob o comando de seus maridos.
O filme coloca ambas diante do início de um novo ciclo de recusa da liberdade. Em meio a uma comunidade patriarcal, elas são potências que inevitavelmente serão mitigadas. Ambas possuem sua parcela de ingenuidade e falta da vivência de mundo. Seu microcosmos é apenas uma pequena parcela do todo que é dominado por homens. Sariri carrega consigo mais que partes de ossadas como souvenier de suas explorações, mas uma curiosidade impulsiva que vê nas pequenas coisas uma história. Dina ainda fantasia com um concurso de revista, tal qual uma adolescente dos anos 2000 leitora de Capricho. Cada uma, a sua maneira, sonha com caminhos diversos aos oferecidos pelo seu ambiente.
É objetiva a maneira como essas duas conflitam diretamente com as figuras masculinas presentes na narrativa. O marido de Dina é um homem limitado, sem sonhos ou perspectiva, que trabalha na mina e tem uma forte inclinação ao alcoolismo. O vendedor mambembe é outro personagem questionável. Desde sua primeira aparição olha com malícia para Dina e oferta presentes com intenções nada caridosas. Apesar da inclinação primordial desses homens às inadequações, são as mulheres que carregam a culpa. O fato de precisarem se isolar no deserto para não tentar aqueles homens é apenas um dos vários indicativos. Outro sintoma é a atribuição dos infortúnios na mina a uma figura sobrenatural feminina, que acredita possuir o destino daqueles homens e se sentir enciumada pelo feitiço que o período menstrual possa causar sobre eles.
As demais figuras femininas servem de contraponto, mostrando dois caminhos possíveis. A mãe de Dina e Sariri é alguém que já está inserida nessa cultura e, portanto, é uma agente de propagação da mesma. A melhor amiga de Dina também. Se oferece para ajudar no parto, estimula o prosseguimento da gravidez e até repreende Dina quando ela toma um gole do vinho em uma festa. As mulheres do deserto, por outro lado, se libertaram do meio. Ainda que em alguns momentos se mostrem tão fantasmagóricas quanto a figura lendária da mina, são como guardiões de Sariri em seu exílio. É pontual como essas se permitem deixá-la sob a proteção apenas do fogo quando a ameaça vem dos animais, mas se recusam a se afastar quando figuras masculinas podem estar à espreita.
A diretora Laura Danoso, apesar dos poucos trabalhos em sua filmografia, é competente em usar o deserto como alegoria e o vilarejo como personagem. O cenário inóspito e árido reforça o quão deslocado no tempo e no espaço é aquele pueblo. Pode se dizer que não se distingue de uma galileia, ou qualquer outro vilarejo bíblico. O peso de carregar o pecado original também reverbera sobre aquelas Evas. A experiência de Sariri também não está muito distante de um calvário. Ainda que planeje com sua irmã uma forma de fugir do seu destino, de uma forma ou de outra, ela adentra naquela não-lugar como menina para sair dele como mulher. Dessa maneira, o filme reserva à Sariri uma narrativa coming of age. Mas é quando olhamos para Dina e seu desespero em abandonar aquela realidade que vemos um amadurecimento tardio ou, pelo menos, uma transformação. O dilema de salvar a si ou a irmã do destino é muito mais complexo que qualquer ideação sobre sororidade. E a diretora soube explorar a dramaticidade tanto da expectativa quando do peso da escolha através da poesia da imagem. Por fim, é possível observar que Sariri serve à trajetória de sua irmã, quase como um MacGuffin. E, o tempo todo, Sariri era um filme sobre Dina.
Sariri foi assistido na Mostra Território do 18º Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte – Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.