“Como Deus te mostrou que a igreja é a verdade?”
Eu sou ateu. Apesar de ter sido criado na igreja católica, onde cheguei a fazer primeira comunhão, comecei a questionar alguns dogmas e perceber que não me sentia convencido ou comungava daquela sensação de confiança e preenchimento que aqueles que acreditam em uma força superior afirma sentir. E digo de forma mais abrangente e não apenas na crença no divino abraâmico – Minha mãe é espírita e meu irmão, budista. Apesar da minha não-crença, acho que alguns ensinamentos religiosos são pertinentes no que diz respeito ao bem-estar social, mas possuo um grande afastamento às doutrinas limitantes ou castradoras. Confesso que, apesar de não me considerar um ateu chato (aqueles que buscam “desvangelizar”, ou atacar os crentes quietos) não costumo ter interesse por filmes que tendem a uma panfletagem religiosa, mas me senti intrigado com a sinopse de Herege.
No longa, duas adolescentes missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias são escaladas para visitar a casa de um inglês recluso afim de compartilhar com ele um pouco da doutrina mórmon para que, assim, convença-o a fazer parte e sua congregação. A conversa que é acompanhada de uma promessa de torta de mirtilo começa a desafinar quando pequenos questionamentos a respeito dos dogmas da religião enveredam para um tom ameaçador. Em pouco tempo, as meninas se veem aprisionadas naquela casa que se revela um labirinto sem comunicação com o mundo exterior com um anfitrião obcecado em fazê-las deslumbrar a “verdadeira crença”.
Logo na primeira interação entre as meninas, somos apresentados ao questionamento sobre crença e verdade. O diálogo entre elas coloca em xeque a percepção sobre verdade a partir do marketing de preservativos. Nesse momento também temos um deslumbre da personalidade das duas missionárias. A irmã Barnes (Sophie Tatcher), de cabelos e roupas pretas, possui uma personalidade mais combativa e parece mais familiar com os valores seculares. Em contrapartida, a irmã Paxton (Chloe East) se mostra mais conservadora. Suas vestimentas são mais sóbrias apesar de incorporarem cores como o rosa e o branco – ambas relacionadas à pureza e à castidade). Sua personalidade sugere uma maior inocência, visto que é mais insegura com seus resultados, com o olhar do outro sobre si, além de preferir desviar-se de conflitos.
Essa dualidade que beira a antítese persiste ao longo de Herege para além da dinâmica entre as jovens. A aparência inofensiva e a simpatia inicial do Sr. Reed (Hugh Grant) conflitam com a trilha musical de tenção e os planos-detalhe alarmistas ao longo da sequência de apresentação entre vítimas e algoz. Fica claro que aquele é um ambiente hostil que, muito em breve, se revelará uma armadilha. O foreshadowing como recurso narrativo para sugerir uma antecipação de algo que está por vir é excessivamente explorado, diluindo um pouco da tensão construída pela intimidação que se desvela a cada questionamento do anfitrião. Por outro lado, a acidez dos diálogos é bem pontuada. O humor é bem dosado e pertinente nos momentos em que choca a cultura erudita de pensadores acadêmicos com falas de personagens da cultura popular. Nessas cenas, o filme define um paradoxo entre protagonistas e antagonista, ao mesmo tempo que nos oferece uma nova faceta da irmã Paxton: apesar de sua inocência conservadora ela não é tão desconectada da cultura secular.
Da mesma maneira, o personagem de Grant permite trazer elementos da cultura de massa para explicar sua tese sobre as religiões. Acompanhamos as missionárias nessa catequese – até o cômodo é planejado para parecer um templo; temos diversas imagens de divindades, livros sagrados e um altar. O discurso do Sr. Reed sobre a convergência das religiões me recordou as aulas de comunicação comparada da faculdade. Mas o que começa até interessante começa a se prolongar e perde nossa atenção. A aparição de uma nova figura na trama aviva nossa curiosidade e nossos questionamentos a respeito da “verdade” a ser revelada no filme. Ainda que os formalismos durante a chegada das irmãs à residência denunciem que aquele não é um anfitrião confiável, a maneira com que o filme brinca com as crenças do espectador é inquietante. Para além da discussão sobre fé e religiosidade, o filme nos faz questionar a nossa percepção sobre os eventos tratados em tela. Será que, apesar de estarmos observando de fora, conseguimos diferenciar “ilusão” de “verdade”? E, é dessa maneira, com que ingressamos naquele labirinto junto das protagonistas.
Hugh Grant, para mim, não é um dos atores mais versáteis. Seus maneirismos de galanteador canastrão britânico são repetidos também em Herege. Mas dessa vez, essa característica de Grant é incorporada à narrativa auspiciosamente. Existe um quê ameaçador em sua simpatia fabricada. E é graças à sua interpretação que o filme consegue proporcionar até uma risada ou outra vinda de um humor ácido bem colocado. Reitero que essa acidez é, inclusive, um dos maiores méritos do filme, buscando subverter recursos narrativos, como o Deus Ex Machina – mais pertinente impossível – e abraçando convenções clássicas do terror, como a da garota final. Ainda que o foreshadowing tenha sido desgastado a ponto de coibir algumas de nossas surpresas, Herege foi intrigante o suficiente para nos fazer duvidar de nossos olhos.
Herege estreia nos cinemas dia 20 de novembro.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.