por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
O rompimento de uma barragem próxima a uma comunidade ribeirinha transforma o rio em lama. A contaminação assassina o meio de sustento das famílias que dependiam da pesca e da água natural para as tarefas rotineiras. A água limpa e potável, que era consumida com tranquilidade, agora forma um assustador contraste barrento quando se encontra com o mar azul, uma linha divisória da poluição. Margeado, filme mais recente de Diego Zon, denuncia um dos tantos desastres semelhantes que ocorrem em território brasileiro, partindo de suas consequências na vida pessoal da família de Yara (Verônica Gomes) e Dingue (Danilo Andrade), que se vê cada vez mais encurralada e induzida a deixar o local de suas origens.
A margem referenciada no título não é só a do rio. Diego Zon observa, sobretudo, as pessoas que vivem nesses espaços em condições marginalizadas, que mesmo vítimas de um crime disfarçado de tragédia, continuam abandonadas e relegadas à própria sorte. Enquanto Yara permanece, Dingue decide partir. Para onde? Reto. É essa a resposta que ele fornece aos que lhe interpelam a respeito. Com sua moto de correias enferrujadas pela maresia, ele segue pelas montanhas, em fuga da poluição, enquanto o trajeto do rio, invariavelmente, segue seu curso para interferir também em outros locais.
Margeado divide-se em estrutura tal qual o rio que encontra o mar. O letreiro com o título do filme só aparece depois da primeira hora de sua duração. Nos 60 minutos iniciais, acompanhamos o que resta da vida de Yara. Nos demais 90 minutos, é na jornada de Dingue que ele vai se concentrar. Enquanto permanecemos na comunidade ribeirinha, o filme carrega uma potência firme, é consistente ao construir indignação coletiva a partir da vida da mulher protagonista. Zon bem aproveita a força da própria imagem da atriz Verônica Gomes, não necessitando fornecer a ela muitos diálogos, uma vez que seu trabalho dá conta de expressões e gestos que demonstram um sofrimento que não se vitimiza, que é a representação da própria resistência.
Nas montanhas por onde Dingue vai perambular, Margeado não só perde o tom de antes, como parece abandonar a calma anterior para afobar-se na inserção de acontecimentos e tramas paralelas um tanto confusas. Se o personagem de Danilo Andrade perde a noção do tempo e não consegue se encontrar longe do mar, o filme parece o acompanhar na falta de norte. É compreensível que sua rota consista em deixar-se levar pelas situações e pessoas, mas a tentativa de justificá-las soa como uma necessidade vazia de dar um estofo narrativo que destoa das pausas oníricas que o longa muitas vezes faz.
Tais pausas são muitas, e a sensação é que o filme não sai do lugar. Por diversas vezes tudo indica que ele encontrará seu fim, há um certo fechamento de ciclos, para que outro se inicie. Dingue procura por um senhor em específico na montanha, e sai perguntando aleatoriamente sobre ele. Até que ele chegue ao sujeito, sua moto quebra, ele encontra pessoas, pede informações, passa por um carro de som que anuncia um velório em andamento. O filme pausa para que assistamos ao que a anunciante do veículo nos tem a dizer, e depois suspende novamente para que ouçamos uma canção, na íntegra, que está tocando em um dos rádios de uma loja de conserto de eletrodomésticos. São intervalos de tempo suspenso que Margeado impõe de forma individualmente muito interessante, mas ao se repetirem com frequência perdem seu propósito para dar lugar à exaustão e à falta de encaixe no todo.
A presença de Antonio Pitanga é um acontecimento que o filme faz questão de celebrar. É seu o personagem que está sendo velado no vilarejo, e o protagonista vai conectar-se a ele como num sonho, como se a obra precisasse encontrar, em algum lugar, um espaço para que o brilho do ator domine as telas. Pitanga tudo preenche com um monólogo sobre a natureza, e muito embora o texto seja um tanto extenso, o deleite em assisti-lo é tamanho que não nos importamos – é uma oportunidade para apreciarmos sua presença e energia.
Esse deslocamento de cenas, que é regra no filme, faz com que o longa de Diego Zon pareça uma colagem de muitos retalhos pensados com esmero estético, mas que unidos não costuram uma peça unificada, pois alguém esqueceu-se de cortar suas beiradas e excessos. Sua beleza onírica e suas simbologias imagéticas perdem-se na quantidade de eventos que Margeado faz questão de mostrar, saindo de um lugar de contemplação e denúncia ambiental e social para fixar-se em uma auto apreciação que o faz desaprender a consciência de si mesmo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.