por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
O oeste brasileiro, representado pelo sertão de Goiás em Oeste outra Vez, é tipicamente um lugar de calor intenso, referenciado pelo céu alaranjado, pelas vibrações de miragem, pela aparência desértica, que tornam a transpiração humana aparente. Trata-se de um espaço de paisagens exuberantes, onde a vegetação rasteira é coberta de restos de lixo, sacos plásticos e garrafas de cachaça. O novo longa de Érico Rassi apresenta os elementos singulares do cinema de faroeste, mas o instinto de violência, aqui, é dissociado de qualquer aparência de virilidade ou força masculina: os cowboys e pistoleiros são homens rudes, amargurados, de físico frágil, que disputam entre si em razão da inaptidão em lidar com os próprios sentimentos ao serem abandonados por suas companheiras.
Nos últimos anos, é perceptível que há uma tendência de apropriação e renovação do western, realizado sob a perspectiva daqueles que, tradicionalmente, são desprovidos de representatividade adequada no gênero. Jane Campion o faz magistralmente em Ataque dos Cães, Kelly Reichardt em First Cow, Martin Scorsese em Assassino da Lua das Flores. A diversidade de olhares não só subverte violências e estereótipos, reproduzidos pela história do cinema gênero afora, mas também viabiliza reparações históricas e faz nascer novas narrativas. O abrasileiramento proposto por Érico Rassi vai, de forma semelhante, trabalhar com a transfiguração do ponto de vista tradicional, contudo, para refletir as figuras masculinas de um modo observacional e bastante psicológico, deixando que elas mesmas, pelo ridículo de suas ações (ou a falta delas) revelem, inconscientes de si, suas amarguras e melancolias.
É ainda mais interessante que tal concepção de masculinidade frágil parta de um diretor homem. Trabalhando sob uma linha tênue entre a ridicularização e a humanização, o diretor encontra um ponto de equilíbrio impondo um respeito sensível por seus personagens. Oeste outra Vez carrega uma tristeza cômica, capaz de fazer rir sobre a dificuldade de se expressar daqueles homens, ao mesmo tempo que nos compadecemos de suas condições. Esse compadecimento, entretanto, jamais os coloca em posição de vítimas, e a genialidade de Rassi é se ajustar de forma certeira por entre tais caminhos que seriam tão facilmente ultrapassados.
Totó (Ângelo Antonio) é um dono de bar inconformado com o fim de seu relacionamento. Quando sua ex-companheira passa a se relacionar com Durval (Babu Santana), parece impossível que ambos coexistam. A introdução primorosa da obra coloca Totó emboscando o veículo de Durval, e um embate físico entre eles começa. Com a câmera posicionada dentro de um dos automóveis, vislumbramos a única mulher presente no filme, o motivo da disputa. De costas para a briga, sua fisionomia é cansada, e sem lançar o olhar à risível tentativa de chamar sua atenção, ela sai do carro, e se afasta no horizonte da estrada de terra. Totó, então, decide contratar um capanga aposentado (Rodger Rogério) para dar cabo de seu inimigo.
Em que pese a ausência imagética de mulheres, elas são onipresentes na medida em que constituem a justificativa daqueles homens para digladiarem-se e afogarem suas frustrações. Não há, para além do ato introdutório, uma única mulher, mas são constantemente mencionadas e lembradas antes de um (ou muitos) copo de cachaça. Se o alcoolismo impera, se a casa está suja e a louça por lavar, se mal se alimentam, se querem assassinar uns aos outros, é porque não conseguem lidar com suas solidões, mas a culpa é atribuída à falta feminina. Homens broncos, adultos, quase monossilábicos, extravasam na violência e no auto abandono suas próprias fragilidades sentimentais. Buscam, em suas esposas, namoradas e companheiras, a figura materna que visa garantir o cuidado que perderam.
Rassi trabalha com dois elementos importantes na construção da inabilidade emocional dos homens de seu filme: a cachaça e o silêncio constrangedor. Os diálogos são acompanhados, geralmente, de um “sei bem como é que é”, cuja resposta é quase sempre um “não é fácil não”. A prosa dificilmente evolui e é seguida do esvaziamento de uma nova garrafa. Mesmo quando essas figuras estão próximas, um abismo parece existir entre elas, um distanciamento que é mantido em prol da defesa daquilo que a masculinidade representa.
Talvez o exemplo mais significativo esteja no relacionamento entre os matadores Antonio (Daniel Porpino) e Domingos (Adanilo). Quando o personagem de Porpino tem dificuldades para dormir, seu companheiro de ofício se propõe a conversar. Cada qual em sua cama, ocupando os cantos da tela de modo a realçar a lacuna entre eles, muito embora sempre juntos, são incapazes de dialogar. O diretor evidencia o isolamento dos homens de seu filme afastando a câmera dos ambientes para mostrá-los em sua solitude, interior e exterior. É ironicamente triste, ainda, quando o movimento é realizado para mostrar, dessa vez, Totó em seu bar, apoiado no balcão, para revelar duas portas ao seu lado, com os dizeres “ele” e “ela”.
O personagem de Rodger Rogério, impecável em sua caracterização, acrescenta novas camadas a esse estudo de masculinidades. O pistoleiro idoso, que leva nas costas uma marca de gado, sofre por perceber a diminuição de suas capacidades em razão do avanço da idade e das consequências do descuido de uma vida. Ele mostra seu bíceps sem vigor para Totó, recorda quando era chamado para sempre realizar o trabalho mais pesado nas fazendas que trabalhou, sente saudades de seu passado, do respeito que tinha perante seus companheiros. Quando ele erra o alvo, sua frustração é perceptível pelo semblante cada vez mais cansado que o ator entrega, e ainda, por sua insistência em atirar a esmo, como que em treinamento. Diferentemente dos demais homens, ele não sofre por um amor abandonado, pois jamais relacionou-se com mulher alguma.A busca cíclica pela violência de homens uns contra os outros soa como uma necessidade de autoafirmação de masculinidades ameaçadas. Para eles, o amor (ou o que eles chamam de amor) e a morte são indissociáveis. Enquanto sentimentos continuam sendo internalizados, o ciclo de matança não tem fim, e via de consequência, a amargura e a frustração também não. Resta, nessa constante, o bar, a cachaça e as canções bregas de amor sofrido de Nelson Ned, elementos que, unidos, são trégua e parecem permitir a proximidade, ainda que momentânea, desses seres estudados em Oeste Outra Vez.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.