por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Quebrar o brinquedo não termina com a brincadeira. Os estilhaços se espalham para criar e multiplicar as formas de brincar. Ricardo Alves Jr., através de uma narração introdutória que bem sintetiza a experiência de Parque de Diversões, permite pensá-lo, em retrospecto, como o próprio brinquedo fragmentado em pedaços tão pequenos que sua difusão abre um mar de novas e infinitas possibilidades de se divertir. A diversão, aqui, é sexual e queer, e o diretor vai trabalhar o nosso envolvimento, como espectadores, numa sequência que percorre o caminho do sexo: o filme se inicia nas preliminares e termina com o orgasmo, tanto nas imagens como estruturalmente.
O parque da cidade de Belo Horizonte é o espaço-palco para as performances dos corpos LGBTQIA + que darão vazão aos seus desejos. O diretor não mostra qualquer pressa na construção de uma atmosfera de desconfiança e atração na prática de cruising, que consiste na busca por parceiros anônimos para a pegação ou sexo praticado em espaços públicos. Os personagens circulam pelo parque numa troca de olhares intensa e profunda, um jogo que vai ditar a crescente do tesão e a escolha do pretendente. As expressões são dúbias, há sorrisos, há seriedade. A excitação é, primordialmente, definida pelo olhar.
Nesse jogo, alguns personagens apenas observam. Outros, praticam estímulos em seus parceiros desconhecidos, que recebem o prazer oferecido. Se essa seleção aleatória é baseada na química do olhar, o voyeurismo vai estar tanto na câmera como na relação daquelas figuras umas com as outras. O espectador é convidado a ser voyeur do voyeurismo. A ausência de diálogos na maior parte do filme eleva a sensorialidade da experiência, que além de, naturalmente, ser muito física, é totalmente dependente do desempenho dos corpos que se conectam.
Desempenho, de fato, talvez seja a palavra correta para definir a exigência que se faz dos intérpretes em Parque de Diversões, e é aqui que reside o incômodo que ele parece estar causando. Ricardo Alves Jr. trabalha com imagens explícitas. Não só a nudez é direta, mas a excitação, os pênis eretos, a penetração e o orgasmo também o são. O desejo e o prazer são visíveis, e a forma de consumá-los é o estilhaçamento de brinquedos que o diretor faz. Há diversidade de pessoas que buscam o êxtase sexual e há diversidade de fetiches e modos de jogar.
Parece existir uma tendência primeira a encaixar o longa como pornográfico, o que ele certamente não o é. Além da elegância estética, o que Alves Jr. nos proporciona é uma experiência performática, coreografada, quase como se sua câmera estivesse numa intervenção artística e a registrasse para nós. A observação da câmera não é aleatória, mas sim rigorosamente estudada para esbanjar sensualidade para além do ato físico do sexo. O diretor calcula a iluminação e suas cores, os elementos naturais do parque, como flores e árvores, e os compõe em prol de uma beleza imagética erótica, e não da excitação rápida e barata. O som das peles que se entrelaçam e do ritmo da relação é aumentado, alternado com a trilha sonora eletrizante que eleva o frenesi do filme. O próprio parque de diversões que há ali dá azo à criatividade sexual conforme suas atrações. Até o golden shower se torna cinematograficamente interessante nas mãos do cineasta.
Parque de Diversões dá espaço não só para que exista tesão homossexual nas telas, como abrange uma pluralidade de cores, tamanhos e tipos dos corpos representados, reproduzindo, ainda, o prazer de pessoas com deficiência. Um dos personagens possui deficiência visual, e sua excitação se dá por meio do voyeurismo indireto pela descrição falada da relação de outras pessoas, o que chega a ser tocante. Num cinema dominado por relações heterossexuais, assistir a um filme todo dedicado ao sexo de pessoas LGBTQIA + é uma revolução e uma exigência por um espaço que sequer precisava ser requerido.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.