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Deuses da Peste

4/5

Deuses da Peste

2025

130 minutos

4/5

Diretor: Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado

por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Se em tempos politicamente sombrios, a arte e a cultura são as primeiras a serem atingidas, tempos minimamente mais saudáveis nos fazem esquecer o sofrimento de outrora, como se penetrados num merecido entorpecimento. Para além da relevância cinematográfica e histórica absoluta de Ainda Estou Aqui, o longa parece ter nascido no momento certo ao elevar a magnitude da preservação da memória, em seu sentido tanto estrito, como elemento do corpo e existência humana, como em sua essência mais ampla, aplicada à política na recordação de tempos ditatoriais que não podem ser esquecidos. O experimental Deuses da Peste, dirigido por Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza, premiado na Mostra Olhos Livres da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, percorre de forma semelhante o caminho de uma reminiscência de períodos obscuros que, muito embora ainda muito latentes, estão perigosamente adormecidos e se estruturando para retornar.

Dividindo a obra em três atos (A Tempestade, A Peste Branca, O Capital), é através do estudo do próprio ofício de atores e atrizes que Deuses da Peste desenha seu exercício de memória, funcionando como um grande palco de teatro, que traça uma linha histórica que cita desde Shakespeare à Gilberto Gil e vai peregrinar pandemias antigas e contemporâneas, reis e ditaduras, para chegar na mais recente necropolítica brasileira e tecer críticas e ironias sobre a extrema direita de nosso país e como tudo isso atinge, diretamente, a arte em primeiro lugar. 

Reflete-se a arte para, via de consequência, discutir-se política, assuntos indissociáveis e interdependentes. No palco fílmico, os intérpretes vão performar uma autorreflexão da atuação. O ator mais experiente ensina ao ator mais novo a primordialidade da plena consciência corporal, o corpo que não só reproduz o texto, mas a mente que deve se atentar ao corpo apoiado na coluna, ao peso que precisa ser distribuído entre as pernas para um adequado e imponente equilíbrio, a altivez do artista que deve se assemelhar à postura eterna do pescoço de Gilberto Gil. A compreensão da presença do artista nos palcos vai transcender o teatro para tornar-se a percepção dele mesmo nos espaços sociais e políticos que o atingem.

Enquanto governos repugnantes, vulgares e atrasados como os vivenciados por nós em concomitância, por grande azar, à pandemia trazida pela Covid-19, arrastam a arte para o fundo do poço, o artista em si não morre, mas renova-se em criatividade para renascer mais forte. Os diretores nos recordam que, durante os maiores surtos da peste bubônica, Shakespeare escreveu, em quarentena, suas melhores peças. Muito embora o moralismo, a religião e os modelos de política opressora atribuam aos artistas a causa de todo mal (“a peste é causada pelo pecado, a causa do pecado é o teatro”), atores e atrizes são como fênix. Deuses da Peste conduz a complexidade dessa relação unindo o texto poético e sarcástico à performance dos corpos nessa experiência alucinógena.

Quando assume seu lado mais direto ao debochar da extrema direita brasileira e da possível lavagem cerebral sofrida por seus seguidores, Deuses da Peste não permite que o cinismo e o tom jocoso retirem a preocupação com relação à possibilidade de reerguimento dessa insanidade. Ele tece ironias posicionando personagens patriotas carregando a bandeira do Brasil ao som de uma marchinha militar, e extrai os maiores absurdos nascidos das fake news para ridicularizar essas figuras. Delírios como a invasão do corpo de Lula por um UFO que introduziu a mente de Bolsonaro no atual presidente e frases como “Não vão comer meu cachorro” integram o texto equilibrando muito bem a loucura com o perigo real que ela representa. 


Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza conseguem ir mais além na crítica ao abordarem o eurocentrismo. Como numa escola nesse palco que se modifica a todo momento, um personagem ensina outro que o ser humano é Europa, tudo é Europa, que a Europa é o berço de tudo. Ao questionamento sobre a África, o professor responde: “Vamos falar do que importa: Europa”. Deuses da Peste é uma viagem entorpecente e lúdica na mesma medida, que nos recorda que o berço da humanidade, decerto, é a própria arte que perpassa tempos, calamidades e arbitrariedades de forma cíclica e ainda assim, resiste no corpo do artista.

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