Ovacionado no Festival de Cannes e no Globo de Ouro, Emilia Pérez colecionou também 13 indicações ao Oscar em 2025, e vem fazendo barulho e chamando a atenção para si por onde passa. Apesar do sucesso no hemisfério norte, o longa não está sendo bem recebido pelo público latino-americano. Ainda que possua diálogos em espanhol, o filme é uma produção francesa, e nenhum de seus protagonistas nasceu em solo mexicano.
Emilia Pérez traz em sua premissa principal a contratação de Rita (Zoë Saldaña), uma advogada insatisfeita com o seu trabalho, por um líder do cartel para auxiliá-lo em realizar uma cirurgia de redesignação sexual. O narcotraficante oferece recursos ilimitados e uma fortuna como pagamento enquanto revela estar disposto a renunciar a sua vida como “Manitas” Del Monte para, enfim, se revelar Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón).
É fascinante, a princípio, trazer a questão da transexualidade em um personagem que não só habita, mas está no alto escalão de uma máquina de violência que é um cartel. Não bastasse, a imagem de Manitas é propositalmente embrutecida (por uma maquiagem um tanto questionável, apesar de ser uma das categorias a premiação nas quais o filme concorre). Dentes platinados, tatuagens no rosto são alguns dos elementos que visam monstrificá-lo. Ainda assim, o mesmo revela sua vulnerabilidade ao compartilhar seu desejo oculto para Rita. A proposta que ainda inclui a transferência de sua esposa Jessie (Selena Gomez) e seus filhos para a Suiça demonstra sua determinação em abdicar dessa vida.
Rita se mostra realizada por finalmente proporcionar alguma transformação positiva na vida de alguém através de seu ofício. Essa alegria também poderia ser sentida, caso essa transformação não fosse tão superficial e resumida, se concluindo logo no primeiro ato. Enquanto espectadores, não tivemos tempo o suficiente para nos conectar com a personagem, nos aprofundar em seus anseios e, tampouco, vislumbrar mais do processo de adaptação à nova vida. Ao invés de apostar numa abordagem humanística, o filme envereda para o grotesco (grosseiro + burlesco). Com uma sequência musical constrangedora, o processo cirúrgico de redesignação é simplificado em quatro etapas cirúrgicas ritmicamente enumeradas, e banalizado pela figura de um médico com a fala “Pênis para vagina. Vagina para pênis”.

Emilia Pérez apresenta uma proposta de musical onde o drama é interrompido para dar espaço a performance. O diretor francês Jacques Audiard pretende emular os feitos de Busby Berkeley, que revolucionou o gênero com números musicais caleidoscópicos e dinâmicos. Ainda que recorra ao expressionismo através do corpo de suas atrizes para espelhar o emocional de suas personagens, suas sequências não chegam a cativar, também não nos surpreende pela criatividade (Esse quesito é melhor explorado por um conterrâneo com tendências surrealistas: Leos Carax). A sequência das personagens de Selena Gomez e Edgar Ramirez dançando juntos consegue uma centelha de identificação, mas que não vai além disso (o desenrolar da trama corrobora para essa antipatia). Apenas Zoe Saldanã entrega um desempenho musical e dramático satisfatórios apesar de Rita se revelar um mero acessório ao arco dramático de Emilia.
Todo o desenvolvimento da personagem de Karla Sofía Gascón se apresenta de forma abrupta e atropelada. Desde seu interesse pela companhia da família da qual abdicou até seu projeto de “Comissão da Verdade” das vítimas da violência do Cartel se manifestam como uma necessidade imediata. Até mesmo seu anseio pela cirurgia soa instrumental para seu projeto de “redenção”. As elipses empregadas na narrativa revelam as vulnerabilidades do roteiro. Não somos capazes de assumir que Emilia renunciou a sua influência no Cartel. E seu interesse romântico – também repentino – também coloca em xeque o lugar que Jess ocupa em sua vida.
A maneira como o filme retrata o Mexico vai além de mera controvérsia. Audiard constrói a imagem de um narcoestado hegemonicamente dominado por figuras hostis. O povo mexicano é visto de maneira binária: ou vítima ou agente da violência. Aqueles que ocupam o lugar da elite, o fazem através da corrupção ou atos igualmente execráveis. O povo é composto por trabalhadores de baixa remuneração ou membros de gangues cujos corpos são marcados por cicatrizes e tatuagens. O filme se torna ainda mais irresponsável quando o localizamos seu lançamento durante o governo de Donald Trump, que proferiu falas contra a população LGBTQIA+ e boa parte de suas políticas visam a desumanização de imigrantes, principalmente os latinos.
Emilia Pérez ganhou holofotes pelos melhores e piores motivos. Um filme cuja premissa havia potencial de trazer reflexão, identificação e empatia. Contudo, preferiu utilizar de uma pauta sem se debruçar sobre ela, garantindo sua genuinidade através da presença de uma atriz trans. Por fim, uma sequência de superficialidades e escolhas questionáveis, dentro e fora do quadro.
Clique aqui para ler o texto de Márcio Sallem.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.