Desde criança, estive em contato com a arquitetura brutalista sem sequer perceber que havia algo de singular nela. Cresci em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, e sempre passava em frente aos prédios da UERJ, aquelas imponentes estruturas de concreto que, para mim, definiam o que era uma faculdade. Sem saber, eu associava a rigidez e a austeridade daquelas construções ao próprio conceito de formação superior – uma ideia que fazia sentido na minha cabeça de criança, mas que, na verdade, estava ligada à estética brutalista, com sua imponência bruta e sem adornos. Foi só na faculdade de jornalismo, ao estudar história da arte, que descobri o termo ‘brutalismo’ e entendi que aquela arquitetura que me cercou na infância carregava valores que iam além da funcionalidade. Apesar de ainda passar diante da universidade, o termo acabou caindo no meu esquecimento. Mas ganhou minha atenção após O Brutalista ser indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Ator (Adrien Brody), Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte, Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora.
O Brutalista nos coloca diante de László Tóth (Adrien Brody), um arquiteto judeu húngaro que sobrevive ao Holocausto e emigra para a Pensilvânia, nos Estados Unidos, buscando reconstruir sua carreira e casamento no país que se vende como “a terra da oportunidade”. Desde o início, o filme parece determinado a chacoalhar o espectador na cadeira, usando a sensorialidade como estratégia para gerar empatia. A cena inicial constrói uma atmosfera opressiva com sua montagem frenética: a alternância e sobreposição das imagens da fuga de László, captadas com câmera na mão, e do interrogatório de uma mulher, enquanto uma trilha sonora que imita batimentos cardíacos intensifica a tensão. O clímax desse turbilhão sensorial é o vislumbre parcial da Estátua da Liberdade, visto de um olhar subjetivo. Como um parto turbulento, essa sequência dá à luz uma nova vida — uma vida de “liberdade”.
O filme questiona a propaganda americana ao expor como László é recebido como imigrante. A tão prometida “terra das oportunidades” rapidamente se revela um terreno de oportunismo, especialmente para minorias. A estratificação social que ele encontra parece funcionar como uma cadeia alimentar, onde os mais fracos servem de sustento para os mais fortes. Seus valores coletivistas, moldados pelo Leste Europeu influenciado pela União Soviética, entram em conflito direto com o individualismo feroz dos Estados Unidos. A primeira fagulha desse choque surge quando László questiona a lógica de uma fila de alimentos: por que a ordem de chegada vale mais do que a fome de uma criança? Mas isso é só o aperitivo do que ele ainda enfrentará. O sucesso tem um preço — e Atilla (Alessandro Nivola), seu primo, é a prova viva disso. Dono de uma loja de móveis que atende à elite americana, Atilla precisou se remodelar para ser aceito. Trocou seu sobrenome judaico por um mais “assimilável”, acrescentou “e filhos” ao nome da empresa — mesmo sem ter nenhum — para criar uma fachada de tradição familiar. Nem sua fé permaneceu intocada: para caber no molde da América, converteu-se à religião de sua esposa.
A família que contrata os serviços da Miller & Sons se comporta como os guardiões de um suposto paraíso americano. O patriarca, Harrison Van Burren (Guy Pearce), um industrial milionário, encarna o mito do self-made man, mas só reconhece o talento de László quando uma matéria sobre si próprio desperta atenção inesperada para a biblioteca projetada pelo arquiteto. Arrogante e dominador, Van Burren trata Tóth e sua família como meros adereços em sua coleção de excentricidades. Seu filho, Harry (Joe Alwyn), reflete sua arrogância, mas carece da visão de negócios do pai, vivendo à sombra de um reconhecimento que nunca chega. Já Maggie (Stacy Martin), sua irmã gêmea, parece ser a única com uma verdadeira empatia por László e parentes, mas sua presença é abafada pelos homens de sua família, como uma flor sufocada pelo concreto. Os Van Burren personificam a essência contraditória dos Estados Unidos: descendentes de imigrantes europeus, desconectados das raízes da terra que habitam, acumulando riqueza à base de esquemas e ostentando projetos grandiosos que refletem mais sua megalomania do que qualquer ideal estético. A brutalidade com que exercem seu poder revela a essência de uma elite acostumada a enxergar os outros não como indivíduos, mas como materiais descartáveis de um canteiro de obras, úteis apenas enquanto servem ao projeto de sua própria grandeza.

O modelo arquitetônico concebido por Tóth para dar forma ao centro social de Harrison — um projeto que visa mais consolidar seu nome na memória da comunidade do que oferecer benefícios reais a ela — é uma reprodução de si próprio. Algo que ele descreve como resiliente. Algo que resistirá às intempéries e às guerras. Algo cuja beleza se manifesta na solidez. O concreto bruto (béton brut, termo francês que dá nome ao movimento) abdica de adornos para exibir sua força sem disfarces. Mais do que a guerra, o arquiteto sobreviveu à fome, à desesperança e a condições adversas que moldaram sua identidade. Mas o concreto, embora rígido, pode assumir diversas formas sem perder sua essência. Pode erguer uma estrutura imponente, firme, que abriga e inspira. Ou pode ser diluído até perder sua integridade. László se mantém fiel à sua natureza, resistindo às pressões do ambiente como uma construção inabalável. Já Atilla, ao tentar se moldar às expectativas da América, dilui sua própria composição, comprometendo a estrutura que deveria sustentá-lo. Como uma casa feita com mais areia do que concreto, ele se torna instável, frágil — e, acima de tudo, alguém em quem não se pode confiar.
O Brutalista incorpora elementos do movimento artístico em sua composição. A trilha sonora transmite austeridade. O compasso quaternário estrutura em blocos o som. Os acordes de violoncelo em spiccato exprimem a dureza com que a vida se apresenta para László. Aquelas notas curtas e percussivas passam a agressividade de um serrote aos nossos ouvidos. A presença de uma percussão metálica também nos transporta para o ambiente de pátio de obra. Essa construção em blocos também pode ser vista nos créditos iniciais, que se apresentam de maneira não convencional, buscando formas angulares e diagonais. A montagem, assim como a arquitetura, também opta por escancarar suas estruturas. A decisão de particionar a narrativa em capítulos, bem como a interrupção da narrativa para um intervalo, é um exemplo disso. A fotografia do filme também incorpora elementos de cena para dividir com os personagens o olhar do espectador. E não se incomoda em dedicar tempo de tela ao processo de construção, além de exibir a beleza das matérias-primas, como o cimento e o mármore, como obras de arte por si só.

O drama acerta em escancarar a verdadeira essência da América. A virtude da exploração (no sentido de exploitation) parece estar no D.N.A dos indivíduos que tomaram posse daquele solo. Se o brutalismo se propõe a despir suas construções de toda artificialidade, O Brutalista faz o mesmo com o país, fazendo dos Van Buren o seu esqueleto. Cuja presença na vida do arquiteto, apesar de aparentar ser uma oportunidade, se revela a origem de sua ruína. Como uma hera que cresce e envolve, corrompe as fundações de uma construção que parecia sólida, os Van Buren são capazes de desestabilizar e destruir aqueles que se deixam tocar por eles — vide o exemplo de Atilla. No caso de László, ainda há o vício em opioides que adquiriu já na América. O que começou como tratamento para uma lesão se tornou um refúgio diante da desolação. Os abusos, que escalonam ao longo da narrativa, por pouco não fazem ruir aquele homem que até então se mostrava inabalável.
É curioso como, na verdade, quem consegue carregar a invulnerabilidade e a firmeza do brutalismo não é o arquiteto, mas as mulheres de sua vida. Sua esposa, Erzsébet Tóth (Felicity Jones), apesar das limitações que sua doença impõe, mantém sua dignidade. Ela funciona como uma bússola moral para o protagonista e, de certo modo, um espelho. Zsofia (Raffey Cassidy), sua sobrinha, se mantém austera em todas suas cenas. Seu emudecimento vem de sua vivência na guerra, onde se recusa a dar o paradeiro do tio durante o interrogatório. Mais que um trauma, seu silêncio implica em uma escolha. Tal qual sua tia, mantém-se inabalável. Ainda que, como László, também tenha sido vítima de abuso sexual — dois estupros ocorrem, um masculino e um feminino, mas o filme tem o bom senso de exibir apenas o masculino por sua relevância narrativa, deixando o feminino implícito no gesto de fechar o cinto do agressor. O silêncio de Zsófia e o grito de Erzsébet quando invade o jantar dos Van Burren para denunciar os atos do patriarca fazem delas as verdadeiras salvadoras de László.
Apesar de suas escolhas estéticas acertadas, a direção de Brady Cobert parece confusa. Seu filme tem uma proposta épica que se sustenta em diversas camadas narrativas e técnicas. O desenvolvimento de seu protagonista é quase uma jornada bíblica em busca da terra prometida, mas sua conclusão está longe de ser apoteótica. Pelo contrário, o epílogo do filme, com o reconhecimento tardio, soa mais do que dispensável. É, inclusive, conflitante com a denúncia estabelecida ao longo de toda a narrativa (exibe Estátua da Liberdade e uma cruz de cabeça para baixo, inclusive) . Parece que o filme busca uma conciliação com o público americano e com a própria América, ao acusá-la de sua propaganda enganosa de “terra das oportunidades”. A direção austera e minimalista, que dialoga diretamente com o brutalismo do filme, é esquecida em alguns momentos expositivos, como o questionamento de László na fila de alimentos ou a cena de Erzsébet no jantar dos Van Burren, que tende ao melodrama. Apesar dessas cenas de apelo, o filme não consegue me atravessar na totalidade. E isso não se deve à sua duração. Pois, apesar de seus 215 minutos, o filme possui fluidez o suficiente para te envolver.
O filme também conta com um personagem acessório, Gordon, amigo de László e pai do menino que estava na fila. Gordon é interpretado por Isaach de Bankolé, um ator poderosíssimo cuja potência é subaproveitada em um personagem que está ali apenas para ilustrar a mísera condição da população negra, um mero estereótipo. E, falando em atuações, Adrien Brody, Guy Pearce e Felicity Jones estão concorrendo nas categorias de Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz Coadjuvante, respectivamente. Felicity está incrível na pele de Erzsébet, uma mulher cuja força o corpo não reflete. Mas não posso dizer o mesmo de Brody e Pearce. Já acompanho o trabalho de Brody há algum tempo, inclusive em produções de menor orçamento. O ator vem se concentrando em personagens que refletem tipos de nacionalidades, quase sempre italianos e judeus. Muitas vezes, esses personagens tendem ao senso comum, a maneirismos. Confesso que não encontrei tanto disso em László, mas encontrei muitas semelhanças com seu trabalho em O Pianista, onde interpretou Vladislaw Spielman. O olhar desolado de László Tóth é o mesmo de Vladislaw, além das semelhanças biográficas dos personagens. Quanto a Pearce, sua vilania está fora de tom, tende ao exagero. Harrison Van Burren parece uma fusão do Sargento Aldo Raines (interpretado por Brad Pitt em Bastardos Inglórios) com Carter Pewterschmidt (sogro de Peter Griffin, na animação Family Guy). Sua leitura de milionário tosco e tirano é caricata, e talvez funcionasse se o filme fosse uma sátira velada — o que está longe de ser.

O Brutalista também me incomoda em seu subtexto. Quando trazemos esse escancaramento da América para os dias atuais, ele fica mais claro com a postura contra imigrantes do atual governo Trump. Podemos também traçar um paralelo entre o presidente americano e o antagonista. Afinal, ambos são descendentes de imigrantes que enriqueceram e possuem personalidades megalomaníacas e tirânicas. Além disso, ambos compartilham uma clara indisposição com imigrantes. Até aí tudo bem. O problema é que, nos tempos atuais, também ocorre uma política de genocídio em massa do Estado de Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza, apoiada por Trump e os Estados Unidos. E o filme, mais uma vez, representa os esforços de Hollywood em ressaltar o sofrimento do povo judeu. Mais ainda, a narrativa de “busca pela terra prometida” se manifesta na vontade de imigrar para o recém-formado Estado de Israel, destacando esse como o refúgio merecido após tanta barbárie. Sendo assim, não consigo deixar de enxergar um quê de propaganda sionista, não tão velada quanto gostariam. Talvez seja daí um dos motivos de o filme não me atravessar. Alguns desconfortos simplesmente ficam entalados na garganta.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.