por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Guarapari, cidade litorânea do Espírito Santo, auge do turismo entre 1960 e 1970, famosa pelas propriedades medicinais de suas areias monazíticas, é o sonho de verão brasileiro que se torna pesadelo nas mãos cuidadosas do diretor Rodrigo Aragão, um valente cineasta que nada contra as marés da falta de investimento em cinema de gênero no Brasil, para dar vida ao seu Prédio Vazio. A modulação e condicionamento de olhares que o cinema estadunidense dita, como berço do sistema dos grandes estúdios a infiltrar-se no mundo todo, finda por prejudicar sobremaneira a realização de cinema de gênero em países como o nosso. Fazer cinema de terror em nossa terra é fazer cinema de resistência, vez que não somente não há incentivo, mas o público é sugestionado, pelas grandes produções estrangeiras, a rejeitar as produções nacionais. Mojica, Juliana Rojas, Marco Dutra, Guto Parente, Fernando Coimbra, são apenas alguns nomes de peso e obstinação que acompanham Aragão nesse fluxo ingrato. Persistem, não desistem, e quem ganha com tudo isso somos nós.
Rodrigo Aragão distorce o sonho já na canção de Nuno Roland, que leva o nome da cidade capixaba e é trilha das propagandas que televisionavam o ápice turístico do local. No ato introdutório de Prédio Vazio, desprovido de diálogos, a câmera inquieta do diretor acompanha um casal de idosos, uma senhora que exala fofura ao dedicar-se ao marido dependente da cadeira de rodas. O ângulo baixo da cabeça do idoso enterrada na areia dá espaço para o vislumbre de um prédio estranho, de ares abandonados, no plano de fundo. Trata-se do Edifício Magdalena, de corredores cobertos por um tapete vermelho sugestivo, e de varandas beira-mar que vão exibir um céu de aspecto onírico, fantasioso e artificial. A deformação de sons, a artificialidade do exterior e a expressão aterrorizada do idoso que não se locomove contrastam com a doçura de sua esposa, com a luz amarelada e confortável que paira em seu apartamento e sua dedicação feliz ao marido, oposição que vai tensionando a atmosfera de modo a já assumir o gênero desde seu início: uma linda história de amor que não vê o perigo, com pitadas de sensações estranhas e visões fantasmagóricas em prato cheio.
O Edifício Magdalena, então, vai transcorrer o tempo até a contemporaneidade, onde o fervo do carnaval nos faz encontrar a personagem de Rejane Arruda com seu namorado, hospedados no singular prédio costeiro. Quando sua filha, Luna (Lorena Corrêa), tem um sonho premonitório, a concomitante morte de uma idosa no local e o sumiço da mãe a fazem partir para Guarapari. Ela vai acompanhada do namorado (Caio Richards), e eles invadem o prédio para descobrir que habitado apenas por Dora (Gilda Nomacce), que se identifica como zeladora, e por muitas almas atormentadas.

Abandona-se o clima de conto, mas a importância devaneante que dá espaço ao terror ainda persiste. Prédio Vazio vai confinar seus personagens no Edifício Magdalena, tal qual Suspiria de Dario Argento enclausura suas bailarinas e O Iluminado de Stanley Kubrick restringe seus hóspedes. Notadamente no trabalho de iluminação, Aragão vai referenciar os clássicos de forma transparente, construindo uma obra sem rodeios, direta, que usa dos mais convencionais elementos do gênero para provocar sensações que vão circundar desde o humor inocente ao absurdo declarado dos acontecimentos: não há economia de almas, aparições horrendas em visões periféricas, maquiagem sanguinolenta, caracterizações exageradas, gritos, diálogos cafonas e explícitos.
A experiência é, decerto, um tanto divertida. O que parece ser um terror feminista se transforma em dilemas maternais. O que soa como uma aventura adolescente vai logo encontrar desolação. O otimismo do namorado bobo e apaixonado a caminho de Guarapari não vai poupá-lo de sua exposição às almas sedentas e se converterá em desespero e sacrifício. A filha gótica curtindo uma cerveja no quiosque praiano, como se não pertencesse àquele lugar, e o romantismo exagerado dos namorados defronte àquele prédio horrível são alguns dos contrastes bizarros que o diretor cria para desenhar o escalonamento de seu filme e dimensionar certa leveza que vai ritmando tudo.
O que uma mãe é capaz de fazer por seus filhos? Os esforços da maternidade não serão medidos pelas personagens de Arruda e Nomacce na proteção de suas crias. Em que pese a maldade, há respeito entre as figuras maternas. Há algo de fantástico e lindo nesse corajoso horror brasileiro. A desolação, o desespero, o medo, o horror, são sensações que, nas mãos de Aragão, vão possuir uma conotação sempre inocente. Prédio Vazio é inocente porque aprecia ser o que é: um terror feito à mão, com esmero e amor.

Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.