por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Em que pese o cinema permita não só contar histórias, mas transformar ideias, pensamentos e sentimentos em imagem, transmitir e fazer compreender o turbilhão de sensações que compõem a complexidade do ser humano é, talvez, um dos maiores desafios de um cineasta. Não há equipamento tecnológico capaz de sustentar, suficientemente, uma ideia vazia. A mais requintada das lentes, a mais avançada das câmeras, serão inócuas se ausente, minimamente, alguma autenticidade. Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo prova que a beleza mais pura do fazer fílmico reside na sensibilidade e criatividade daquele que o faz, e não, necessariamente, nos recursos disponíveis para fazê-lo: trata-se de um filme feito com celular durante o isolamento da pandemia, magnético ao nos atrair para a mente agitada de seu realizador.
Wesley Pereira de Castro é seu próprio objeto de estudo. Ele e Fábio Rogério assinam em conjunto a direção, o roteiro, a montagem, a fotografia, a produção e o som do documentário, cuja câmera-diário irá registrar momentos da rotina de isolamento que divide com sua mãe, Rosane Pereira de Castro. Além de cineasta, é crítico de cinema, radialista e mestre em comunicação social. O olhar afetuoso e bem-humorado que ele imprime sobre acontecimentos ordinários contrasta com a profundidade da autorreflexão que ele propõe, ao expor abertamente a depressão que o acompanha e a avalanche de sentimentos que ela provoca, bem como os pensamentos suicidas que o acometem, retratados com muita honestidade em registros escritos, imagéticos e orais.
Trivialidades e pequenos prazeres são registrados como elementos fundamentais à manutenção da saúde mental do codiretor. O cinema, por sua vez, vem como salvação em um momento em que a humanidade enfrentava, quiçá, a pior adversidade contemporânea: a Covid-19. Em um período de risco e fragilidade absolutos da saúde física e psicológica das pessoas, do disparar de incontáveis gatilhos depressivos e ansiosos, Wesley encontra alívio e escoa uma imaginação fecunda na câmera de seu aparelho telefônico.

Estudioso do cinema e da política, além de pornoteórico, o codiretor vai costurar sua sapiência e expor seus gostos pessoais com humor, muito embora aborde com seriedade e sensibilidade necessárias as questões sobre sua depressão. O apreço pela pornografia vai se ver refletido em seu interesse na exposição de sua genitália tanto de forma descontextualizada do erotismo, ao, por exemplo, registrar seu pênis flácido ou urinando, como em apontamento de seu próprio prazer sexual, ao filmar sua masturbação e orgasmo de forma crua, sem mediações. Wesley lê, para si e para o espectador, trechos de livros, da bíblia, assiste Branco sai, Preto fica de Adirley Queirós e o resume didaticamente para sua mãe, mostra sua coleção de filmes e títulos que vão de Faça a Coisa Certa à Cidadão Kane, conta sobre a decisão de adquirir o livro Imagem-Tempo, de Gilles Deleuze, um investimento financeiro pesado de R$ 56 à época. O cineasta filma sua própria mão, o que soa como referência a Os Catadores e Eu, de Agnès Varda. Ao fazer, estudar e respirar cinema, Wesley encontra equilíbrio em meio ao caos ingrato que o rodeia, tanto interior como exteriormente, como uma estratégia de sobrevivência.
O codiretor expõe, com doçura, a vida simples e dificultosa que leva com sua mãe. Há dias em que falta água. Há dias em que falta sabão em pó. Noutro, o diretor quer comer arroz e só há macarrão: “Você só quer o que não tem”, ouve de sua mãe. Quando chove, o quintal alaga, para alegria dos animais de estimação que dividem espaço com a família: patinhos nadam e se lavam nas poças d’água, galinhas ficam ilhadas. Além dos patos e galinhas, há cachorros (um dos cachorros se chama Sembène) e tartaruguinhas, essas últimas donas dos registros de maior leveza do longa. Retratos corriqueiros e afáveis, realizados com esmero de quem sabe identificar conforto naquilo que é acessível aos olhos.
Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo encontra na simplicidade e na perspectiva que enxerga cinema em tudo, suas maiores belezas. É possível afirmar que trata-se, sim, de um filme de cinéfilo sobre um cinéfilo, que prova que cinema pode ser feito em quaisquer condições. Cativante e carismático, sincero e humano, Wesley resume bem seu trabalho em dizeres que ele cantarola sem qualquer compromisso, provavelmente uma criação momentânea: “Viver é uma coisa complicada, viver é uma coisa tão bonita.”

Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.