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A Vida Secreta dos Meus Três Homens

4/5

A Vida Secreta dos Meus Três Homens

2025

75 minutos

4/5

Diretor: Letícia Simões

por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes

A história de um país é composta pelos estilhaços de histórias individuais. Através de microcosmos sociais e familiares, é possível traçar uma linha de passado que vai acompanhar os acontecimentos políticos de determinado contexto, e justificar características, situações e ações do presente e do futuro. A veia ancestral pela qual navega Letícia Simões em A Vida Secreta dos Meus Três Homens, longa que integra a Mostra Olhos Livres da 28ª Mostra de Tiradentes, bem como faz parte da 13ª Mostra de Tiradentes – SP, é a que a conecta com seus antepassados masculinos. A diretora vai estabelecer um diálogo repleto de questionamentos com os fantasmas dos homens de sua vida: o pai, Fernando, um boêmio que ela descobriu ter colaborado com a ditadura militar, o avô, Arnaud, fugido de casa adolescente para encontrar abrigo num grupo de justiceiros cangaceiros, e o padrinho, Sebastião, um homem negro e gay, vizinho de seu avô, que fotografou sua infância. As respostas que ela procura são tanto particulares como coletivas: como se formou seu Eu através desses três homens? E ainda, como a vida secreta dos três contribuiu para a formação da história do Brasil?

Das escolhas da diretora, dois pontos fazem acender certa curiosidade, se considerarmos os caminhos possíveis para o cruzamento que ela quer arquitetar. Como mulher, um caminho seguro e identitário seria o encadeamento de uma ancestralidade feminina. É fato que, se olharmos para trás, é nas mulheres que encontraremos as mais significativas discrepâncias geracionais. É certo que nossas mães tiveram maiores oportunidades de exercício de direito que nossas avós e nossas bisavós. O elo de gênero que une essas gerações é potente, é evidentemente significativo, é espiritual. A compreensão da opção de Letícia Simões por abordar a vida secreta dos seus homens (e não mulheres) vem quando recordamos seu propósito mais global – traçar a história de um Brasil. O que é a história de um país patriarcal e machista se não aquela contada, majoritariamente, por homens? Militares, cangaceiros, trabalhadores do porto, todas essas figuras e personagens são muito masculinas. A diretora parece assimilar essa necessidade, criando uma obra que vai muito além do vínculo afetivo ou de sangue.

A teatralidade e a poesia ditam a estética da experimentação dessa troca imaginada em A Vida Secreta dos Meus Três Homens. A inspiração teatral possibilita a utilização de cenários neutros, como o pano de fundo que esconde as coxias, e o trabalho de som vai diferenciar os espaços desse imaginativo. Sons de pássaros, de vozes baixas e talheres que tocam os pratos, conversam conosco para que visualizemos os personagens para além daquilo que os olhos permitem ver, para além do palco: é possível idealiza-los em meio à natureza, deitados na grama, ou sentados numa mesa de restaurante. A poesia, por sua vez, dá espaço para as atuações declamadas, e a diretora nos engana com supostos monólogos, tanto dessas três figuras masculinas quanto dela própria, representada por uma atriz, para com um zoom out, revelar a presença de outra pessoa, no exercício de escuta. 

A fala e a escuta, elementos que constituem o diálogo, mostram-se um grande desafio enfrentado por Letícia Simões, principalmente, quando seus personagens são homens por vezes fechados quanto às suas vidas particulares e suas motivações. Há um esforço dela em desvendá-los através do filme, que não esconde a plena consciência que nutre de si mesmo. A idealização e representação fictícia dessas trocas é alternada com a discussão do próprio filme em uma mesa onde a diretora e seus atores conversam a respeito daquilo que cinematograficamente está sendo criado. Perguntas como “como é cada um deles?” ou “O que você diria para a pessoa da foto?” formam as peças que os artistas precisam encaixar na composição de suas performances, e Letícia Simões vai, como cineasta e por sua percepção e memória, dando as diretrizes necessárias.

A vida secreta de cada um desses três homens que criaram e fizeram parte da formação da diretora como pessoa integra uma ou mais vertentes importantes de formação do país – o cangaço, a ditadura, os quilombos, todas elas envoltas de algum tipo de violência. O avô, Arnaud, era o cangaceiro, a presença, numa única pessoa, das forças masculina e feminina, acolhido pelo movimento nordestino de libertação dos pobres, que roubava dos ricos para distribuir lucros e alimentos, que conviveu com Lampião. O pai, Fernando, representa a ditadura (fez parte do Serviço Nacional de Informações em prol do regime). Era quem lhe inspirava admiração e medo, com quem mantinha um relacionamento afastado. 

Com o pai, a troca pela escuta não é suficiente. Ela quer questioná-lo, quer ser ouvida por ele: “Você pode me ouvir, por favor?”, clama enquanto ele, distante, toca violão e toma cerveja. A Letícia Simões que conversa com o fantasma de seu pai se reconhece filha de um assassino indireto, e o pai tenta justificar suas ações pela exaltação de feitos outros: o primeiro na família a realizar curso superior, o primeiro a se tornar professor universitário, um bom pai que não deixou faltar nada à filha. Um relacionamento mal resolvido que, claramente, ainda reverbera suas dores na diretora, e A Vida Secreta dos Meus Três Homens não deixa de ser, de certo modo, uma tentativa de libertação desse peso.

Sebastião, o padrinho e vizinho de Arnaud, é o quilombo. Um homem preto, nascido nos quilombos do Sergipe, que aos 17 anos, pensava ser o único gay no mundo. Representativo de tantos descendentes de africanos que chegaram escravizados ao Brasil, Sebastião é a dor das minorias num tempo em que nem se cogitava haver espaço para elas. Sua história é trágica e envolve a perda de um amor verdadeiro. Tanto em sua representação como na do pai, a diretora explora tomadas externas, e sai do cenário teatral sem perder o aspecto performático das atuações. Se a existência de Sebastião é uma afronta ao conservadorismo e ao racismo, seu personagem vai confrontar a câmera e, diante dela, vai dançar, vestido de mulher – um deleite visual um tanto melancólico.

A Vida Secreta dos Meus Três Homens, como obra fílmica, tem sua existência questionada pelos fantasmas. O filme é memória de Letícia, e como memória, refletiria os acontecimentos como eles realmente ocorreram? A memória é modulável, é ficção, é ponto de vista, e é uma construção que o filme ajuda a realizar. Entre a teatralidade, a declamação e a performance corporal, explorando desde cenários vazios à luzes que exprimem sensualidade e sugerem certa atmosfera de homoafetividade, a diretora condensa, por sua própria história, cheia de caos e cacos a serem juntados, um passado tanto violento como afetuoso de Brasil.

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