por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Transformar a arte pintada em imagem em movimento, e assim, decifrar o artista: Lucas Parente o faz em As Muitas Mortes de Antônio Parreiras. Antônio Diogo da Silva Parreiras foi um pintor, desenhista, escritor e professor carioca, conhecido por, através da pintura de paisagens, representar acontecimentos de forma sublimada e a natureza como se intocada, aproximando os apreciadores de sua arte da emoção sentida o por ele perante os elementos naturais. Para além do retrato paisagístico, Parreiras trazia para seus quadros ocorrências importantes de um cenário político, imprimindo neles uma perspectiva muito própria da história de nosso país. Tendo nascido em 1860 e falecido em 1937, vivenciou um período nacionalista e patriótico, cuja essência encontra-se inserida em suas obras de forma emblemática e questionadora em seus estimados 850 quadros.
Se as pinturas idealizadas por essa importante figura do cenário artístico brasileiro representam um estado sublime das coisas, o diretor vai reproduzir e inserir seu cinema experimental dentro da própria obra de arte pincelada. Se há pássaros na pintura, o filme vai inseri-los em sua trilha sonora e tornar seu canto uma espécie de meditação. Se há fogo representado, o som de seu crepitar o acompanha. Retratos, nus femininos, paisagens, autorretratos, autorretratos do pintor em meio às paisagens e à natureza, exercendo seu ofício. Lucas Parente vai atribuir estímulos sonoros, visuais e narrativos aos quadros, imputando a eles outras emoções para além das impressas no enigma da imagem congelada.
O movimento fílmico, a caracterização de um Antônio Parreiras implantado em suas próprias obras em constante autorreflexão, demonstrada ora pela narração em off, ora pelas falas dubladas dos personagens, que reproduzem, com formalidade, sua poesia, conferem à As Muitas Mortes de Antônio Parreiras uma atmosfera de transe pessimista, onde a loucura paira para revelar as camadas daquele artista. Parreiras morre e renasce por suas obras, e questiona a verdade da arte e da beleza de seu trabalho. Em vida, obteve sucesso financeiro, já que muitas de suas pinturas eram encomendadas e expostas, principalmente, em terras cariocas. A “compra” da arte, através do olhar do diretor, faz questionar a própria natureza do artista – pintor ou mascote? A figura de um personagem que muito remete à Zé do Caixão atua como o diabo que pactua com Parreiras, em clara referência à troca da arte pelo capital: “O diabo é uma fruta sem caroço”.
O ápice do transe é alcançado quando Lucas Parente posiciona um pretenso cadáver do protagonista em estudo caído, na beira de um rio, em meio à floresta, como em uma de suas obras. De encontro a ele, um trenzinho em velocidade, acompanhado de sons de um carro, conduzido por um urubu plástico, artificial, que vai dialogar com aquela figura desfalecida. O ponto de vista da câmera é o do próprio pássaro, pronto para devorar o homem em sua morte.
As Muitas Mortes de Antônio Parreiras parece colocar seu artista em estado de hipnose diante da capitalização da matéria prima artística, e o narrador conversa com o personagem sobre das coisas futuras e a formação de um país que não era, exatamente, o imaginado e sonhado pelo pintor em suas representações sublimes. Essa viagem proporcionada por Lucas Parente vai homenagear o artista e reproduzir suas angústias, contrapondo seu olhar sensível à desilusão de experimentar um Brasil como nação infeliz e acinzentada, destruída pela escravização de pessoas, como uma fortaleza que se sustenta pelo mesmo pacto capitalista que o fez questionar seu próprio lugar como artista.

Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.