Nasci em 1990, o que me permitiu acompanhar três papas ao longo da minha vida: João Paulo II, Bento XVI e Francisco. A figura do Santo Padre sempre foi uma presença marcante na cultura global, algo perceptível desde cedo através das notícias de suas visitas ao Brasil, especialmente no final dos anos 90, quando João Paulo II celebrou uma missa histórica no Maracanã. No entanto, só fui compreender a dimensão política do papado na faculdade, quando estudei História da Arte e mergulhei nas pinturas de Michelangelo na Capela Sistina para meu projeto de conclusão de curso. Esse estudo, por sua vez, me levou a explorar a história de papas controversos como Papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia) e Júlio II (Giuliano della Rovere) e, consequentemente, ao fascinante e enigmático ritual do conclave.
O conclave, cerimônia realizada a portas fechadas, é um dos processos mais rígidos do catolicismo, com raízes que remontam séculos. O isolamento absoluto dos cardeais dentro da Capela Sistina tem como objetivo evitar qualquer tipo de influência externa, garantindo que a escolha do novo papa seja fruto apenas das decisões dos prelados. O símbolo máximo desse ritual é a fumaça que emerge da chaminé da Capela: negra, quando ainda não há consenso; branca, quando um novo líder da Igreja é eleito. Em Conclave, dirigido por Edward Berger, esse contexto solene e austero se desdobra em uma narrativa que se estrutura como um verdadeiro jogo de poder, onde cada voto carrega um peso monumental. O início do filme, com a movimentação inicial dos cardeais, estabelece claramente a dinâmica entre os distintos grupos. A princípio, os cardeais são posicionados como se estivessem em partidos políticos disputando o trono de São Pedro, mas rapidamente a dinâmica se transforma, com as figuras ganhando uma linguagem mais bélica, como batalhões de exército prontos para a batalha. A câmera, ao alternar entre planos fechados e amplos, assemelha-os também a peças de um jogo de xadrez, onde cada movimento é calculado, estratégico e decisivo.


No centro desse jogo está o Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), cuja responsabilidade é coordenar o conclave e garantir que o processo transcorra dentro das regras estabelecidas. Se a instituição católica parece inabalável, o mesmo não se pode dizer do Cardeal Lawrence. Ele é um homem consumido por dúvidas e pelo peso de sua missão. Sua crise de fé se manifesta nos detalhes: o gesto nervoso ao apertar o solidéu contra a cabeça, o olhar carregado, os momentos de solidão nos quais se permite demonstrar fragilidade. Há uma cena particularmente forte, em que ele chora diante do corpo do papa falecido, e fica claro que sua dor vai além da perda de um líder religioso; é a despedida de uma figura paterna, de uma era que se encerra. A mise-en-scène aprisiona Lawrence em composições que o isolam dentro do quadro, deixando evidente o fardo que carrega como decano responsável por conduzir um processo que não deseja liderar. Seu olhar para cima ao depositar seu voto ilustra suas incertezas perante suas decisões e sua procura última por respostas ou intervenção divina.
A mise-en-scène milimetricamente organizada no filme, com seus planos cartesianos e a constante separação dos cardeais em grupos, sublinha não só essa divisão ideológica, mas também o peso das decisões que estão sendo tomadas. A fotografia, com o uso de luz e sombras, ajuda a revelar não apenas a tensão dramática do momento, mas também o estado emocional dos personagens. Cardeais como Bellini (Stanley Tucci), Tremblay (John Lithgow), Goffredo (Sergio Castellitto) e Adeyemi (Lucian Msamati) são frequentemente iluminados por luzes que evidenciam suas faces tensas ou calculistas, indicando que suas intenções nem sempre são claras ou desinteressadas. O uso do chiaroscuro, inspirado nas obras de mestres da pintura renascentista, remete não só à dualidade das suas personalidades, mas também aos rumos sombrios que a Igreja poderá tomar sob sua liderança.

O figurino, por sua vez, se torna uma extensão das características dessas figuras. Os cardeais são apresentados com vestes que variam em densidade e cor, sugerindo seu nível de influência, austeridade e conservadorismo. O Cardeal Lawrence, com sua indumentária impecável, mas com uma aura de fragilidade, se destaca entre os demais, e suas roupas, mais discretas, contrastam com a opulência de outros cardeais como Goffredo, que ostenta vestes mais imponentes e cores mais pesadas, simbolizando seu caráter inflexível e autoritário. O Cardeal Benitez (Carlos Diehz), por outro lado, com suas roupas simples, revela uma austeridade que contrasta com seu poder crescente, sinalizando que ele pode estar se aproximando do centro do poder da Igreja sem fazer alarde. Essa diferença de vestimentas também serve como uma forma de evidenciar a hierarquia entre os cardeais, onde os mais poderosos se mostram com um certo esplendor, enquanto os mais humildes ou em ascensão carregam vestes mais modestas, sinalizando seu status quo dentro da complexa trama do conclave.
Os crucifixos que os cardeais carregam não são meros acessórios religiosos, mas verdadeiras alegorias para suas personalidades e biografias não contadas. Bellini (Stanley Tucci), por exemplo, carrega um crucifixo pequeno, quase discreto, uma representação de sua natureza hesitante e de sua tentativa de equilibrar os valores tradicionais com uma abordagem mais progressista. Tremblay ostenta um crucifixo mais robusto, de aparência sólida, refletindo sua tentativa de manter uma posição de respeito dentro da Igreja, mas, ao mesmo tempo, a sua natureza imprecisa. O Cardeal Goffredo, com sua postura rígida e o crucifixo grande e dourado, exemplifica a força de sua posição conservadora e autoritária, ao passo que o Cardeal Adeyemi, com seu crucifixo mais moderno e simples, reflete a tensão entre tradição e modernidade que ele enfrenta como membro da Igreja Católica e de sua própria cultura. Esses crucifixos, dessa maneira, se tornam representações não apenas da fé, mas também da história pessoal, das convicções políticas e das intrincadas relações de poder que esses cardeais mantêm tanto com a Igreja quanto entre si.
Há, no entanto, um elemento invisível, mas crucial para a trama: a personagem Irma Agnes (Isabella Rossellini). Sua presença discreta e observadora serve como um lembrete da importância das mulheres na engrenagem da Igreja, ainda que sejam constantemente silenciadas e apagadas da narrativa oficial. Ela é olhos e ouvidos atentos, uma peça que os cardeais subestimam, mas que se mostra fundamental no tabuleiro de xadrez político do Vaticano. E se há um grande jogador nessa partida, ele já está morto: o papa falecido, cuja influência se faz sentir mesmo após sua partida. Desde os primeiros diálogos, é mencionado seu talento no xadrez, uma metáfora para sua capacidade de manipular a sucessão papal mesmo além do túmulo. Ele é um estrategista supremo, que orquestrou seu próprio legado com precisão cirúrgica.

No meio desse embate, surge um inesperado elemento: o Cardeal Benitez. Ele se encaixa no arquétipo do forasteiro que desafia as estruturas estabelecidas, alguém que parece deslocado até o momento crucial em que entra em cena com um discurso arrebatador. Sua ascensão soa quase como um deus ex machina, uma virada súbita que redefine os rumos da narrativa. No entanto, essa estratégia de manter um personagem na sombra para depois destacá-lo no clímax não é novidade no cinema; trata-se de um velho truque de storytelling. O grande choque do filme, a revelação de que o cardeal é intersexual, adiciona uma camada de complexidade à história. Essa escolha narrativa se destaca por trazer visibilidade a uma letra pouco abordada dentro da comunidade LGBTQIA+, especialmente em discursos afirmativos. Mais do que um mero artifício dramático, essa revelação serve como uma provocação teológica: se a obra de Deus é perfeita, como a Igreja lidaria com um papa que desafia suas próprias concepções de gênero? Ainda assim, o filme planta pequenas pistas visuais – os traços suaves, os cabelos levemente mais longos, e os demais contrastes com seus ásperos colegas – que podem levar o espectador atento a suspeitar dessa identidade antes mesmo da revelação final.
No entanto, Conclave não se sustenta em discursos progressistas nem busca trazer essas discussões para o primeiro plano de forma declarada. Seu foco está na construção do suspense, e é aqui que a obra realmente se estrutura. A urgência da eleição papal para evitar que a Igreja pareça decadente confere à narrativa uma atmosfera de bomba-relógio, uma tensão reforçada pela trilha sonora, que alterna entre o solene e o inquietante. Essa mesma tensão se reflete na forma como o filme desmantela as chances de cada candidato, isolando-os ou cercando-os dentro do quadro, ilustrando visualmente sua queda. Esses enquadramentos não apenas servem à trama, mas também possuem um caráter poético, evocando paralelos com figuras bíblicas e suas trajetórias de ascensão e queda.
Ao fim, o formalismo rígido de Conclave denuncia aquilo que sempre foi evidente: a Igreja Católica é uma instituição muito mais política do que espiritual. O verdadeiro jogo não é o da fé, mas o do poder. E essa é a grande conclusão que o filme entrega, sem precisar dizê-lo explicitamente.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.