Muitas pessoas tiveram o primeiro contato com Donald Trump através de seu reality show O Aprendiz (The Apprentice), onde o milionário ficou famoso pelo bordão “You’re fired!” (“Você está despedido!”). Mas, apesar do icônico programa já trazer a mentalidade de exploração e assédio moral de colaboradores sob uma trilha sonora que exaltava o verdadeiro deus cultuado pela América Yuppie (Money, Money, Money, Money… Money!), minha antipatia por essa figura nasceu em outro momento. Em Os Batutinhas (1994), Trump faz uma participação como o pai de Waldo, o garoto rico e esnobe que rivaliza com Alfalfa pelo amor da pequena Darla. Lembro até hoje de torcer o nariz para aquele posudo de terno na arquibancada cuja principal fala no filme era: “Waldo, você é o melhor filho que o dinheiro pode comprar”. Aparentemente, eu já tinha um quê de consciência de classe dentro de mim. E, apesar de ser uma ficção, Donald Trump interpretava a si mesmo.
Já o filme de Ali Abbasi inicia sua narrativa olhando para um Donald mais pato do que tubarão. O jovem milionário possuía o desejo, mas não a autonomia para realizar suas vontades. Com a imobiliária Trump sob investigação dos federais e o controle administrativo nas rédeas firmes de seu pai, Fred, seu projeto de revitalização de um hotel no centro de Manhattan parece um devaneio de um recém-formado. O longa também nos transporta para uma Nova York suja e decadente dos anos 70, onde as luzes desfocadas escondem a criminalidade à espreita em cada esquina. A liberdade da câmera na mão e a textura granulada da imagem não apenas nos situam cronologicamente, como amplificam essa sensação de valores corroídos. O início de O Aprendiz nos faz sentir como se estivéssemos assistindo a um filme da Nova Hollywood.

Trump passa por um rebranding guiado por Roy Cohn (Jeremy Strong), um advogado com grande influência política que assume o papel de mentor. Cohn é implacável, e seus métodos rasgam qualquer cartilha de compromisso com a ética e a verdade. Os ensinamentos que ele transmite ao seu novo pupilo parecem ter sido usados para estruturar o caos da pós-verdade que hoje permeia a geopolítica globalizada e conectada. Até mesmo o comportamento de bully que tornou Trump famoso é moldado por Cohn. Abbasi constrói uma atmosfera quase mítica em torno do mentor. Se o filtro amarelado do filme deixa tudo reluzindo como ouro enquanto denuncia a corrupção, o bronzeado artificial de Cohn o transforma num duende à espera de Trump do outro lado do arco-íris com um jarro de possibilidades. Talvez seja na cútis alaranjada que Trump carrega um lembrete de seu mestre.
Mas os primeiros arcos do filme exibem Cohn como uma metáfora para o Diabo, seja pelos acordos escusos, pelos festejos que se convertem em representações do inferno ou pela danação daqueles ao seu redor. Sua influência sobre Trump também não deixa de ser uma influência sobre Nova York: prédios e ternos de luxo são fachadas de podridão.
É importante notar como O Aprendiz pavimenta essa transformação de seu protagonista. As primeiras cenas revelam que Trump é fascinado por fazer parte do Monte Olimpo de Manhattan, mas seu excesso de segurança não se sustenta. Foi divertido vê-lo intimidado diante dos verdadeiros predadores da cidade, encurralado como um cordeiro num cerco de hienas. A troca de olhares entre Trump e Cohn garantiu o convite para que o playboy se juntasse à mesa. Mas seu desconforto fica evidente no flerte de Cohn e na obrigação de consumir álcool – é como se tivesse recém-abandonado o leite materno. Trump ainda tenta provar seu valor para sua família, competindo com o pai. Sua falta de traquejo o faz tropeçar, tanto no mundo dos negócios quanto no das mulheres. Quando se vê sitiado pela própria insuficiência, recorre novamente à sua nova figura paterna: Cohn.

Trump é um personagem edípico. Sua ganância não começa na busca por poder, mas por reconhecimento. Primeiro, o do pai, que não leva a sério suas ideias nem seu potencial. Sua vitória nos tribunais garantirá a sobrevivência da empresa da família, mas ainda assim será necessário o controle absoluto dos negócios para transformar seu sobrenome em império. A próxima figura a ser superada é seu mentor – afinal, o criador está fadado a ser superado pela criação. Após construir seu próprio Olimpo, a Trump Tower, o descarte de Cohn torna-se inevitável. O desprezo de seu pupilo se mostra mais corrosivo que a doença que o advogado tanto se esforça para ocultar. Quem mais sente essa transformação é Ivana (Maria Bakalova), sua esposa. A loira estrangeira – que não é a matriarca Trump, mas poderia ser – vivencia a metamorfose do rapaz desengonçado no predador que, de todas as maneiras, a oprime.
Abbasi deixa o julgamento de seu protagonista para os personagens que o orbitam e para o espectador, ainda que faça um comparativo profético ao abrir o filme com o discurso de self-made man do já desmascaradamente corrupto Richard Nixon. Ainda assim, o diretor se apropria de vestígios de humanidade em Trump para também tirar sarro dele: seu choro após a morte do irmão é comparável ao de uma criança; a impotência causada pelo uso de anfetaminas; a perda do cabelo anunciando o fim de sua juventude ou de sua masculinidade. O processo de criação desse Frankenstein se conclui nas cirurgias plásticas que expõem tanto sua insegurança quanto sua vida de fachadas.
Por falar em aparências, Sebastian Stan, apesar de não ousar tanto, evita cair na armadilha de reduzir sua atuação a um mero mimetismo. E Donald Trump é um prato cheio de maneirismos. Ainda assim, quem se destaca é Jeremy Strong. Na pele de Cohn, o ator entrega uma performance magnética, apesar de beirar o blasé. Chegamos quase a sentir pena quando presenciamos o crepúsculo do advogado.
Apenas a cena final, com Trump e o jornalista, soa repetitiva. O discurso, que rouba para si os créditos da filosofia de seu mentor, escancara aquilo que já sabemos: que Trump passou a acreditar no mito que criou de si mesmo.
O Aprendiz está disponível na Prime Vídeo.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.