Já assisti a milhares de filmes e arrisco dizer que tenho uma boa memória para lembrar da maioria deles. Mas, revisando meu repertório pessoal, chego à conclusão de que poucos me fizeram transitar tão organicamente entre o acolhimento e a desolação em uma única experiência cinematográfica. Dos mais recentes, acho que apenas Aftersun (2022) me conduziu tão genuinamente por essa jornada—um filme que, nos primeiros minutos, nos acalenta com o mais puro afeto, apenas para, no fim, nos arrancar o chão e nos deixar diante dos créditos finais com um olhar vazio, sem qualquer brilho. Até mesmo Ainda Estou Aqui, que me atravessou principalmente pela familiaridade de ser brasileiro, ainda nos oferece um final agridoce—há dor, mas também as conquistas de Eunice, da família Paiva e das políticas públicas que deram um desfecho àquela história. Mas com O Reformatório Nickel, foi diferente. O que ficou, no fim, foi um abismo escavado em meu peito.
Se empatia é se colocar no lugar do outro, Reformatório Nickel leva isso a sério com sua câmera subjetiva. RaMell Ross nos tira da posição de meros espectadores e nos joga dentro da história. A primeira parte do filme é uma redescoberta do mundo pelos olhos inocentes de Elwood Curtis ainda menino. Sentimos o frescor do vento, o gosto da laranja, o aconchego do entardecer e o amor absoluto de Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor), sua avó. A cena em que ela cobre Elwood com um lençol branco transborda carinho de um jeito impossível de medir.

Crescemos junto a Elwood e vemos sua transformação em um jovem idealista. Seu professor negro o incentiva a enxergar além do que a branquitude impõe, mas nada se compara ao impacto de ouvir Martin Luther King pela primeira vez. A cena em que ele para diante de uma vitrine de televisores é um espetáculo visual e simbólico. O reflexo do rosto de Elwood se funde ao de King, marcando o momento em que ele encontra um propósito. Também testemunhamos sua primeira experiência amorosa e, na mesma medida, a asquerosidade da segregação imposta por um velho sulista com uma bengala. Seu desejo de lutar pelos Direitos Civis cresce tanto quanto sua dedicação aos estudos. Compartilhar essa jornada é fundamental para sentir o que foi roubado dele pela era Jim Crow.
Se hoje jovens negros ainda são silenciados por um sistema racista, nos anos 60, um simples erro – ou mesmo a aparência de um – era sentença de destruição. O filme escancara a hipocrisia da justiça e da religião. Um carro com uma cruz nega carona a Elwood (Ethan Cole Sharp). Quem o ajuda? Um ladrão de carros, não por maldade, mas porque vê nele um semelhante – são negros, e isso já basta para estarem no mesmo barco. O tribunal branco e conservador não se importa com os fatos. Para eles, há apenas dois negros criminosos num carro roubado.

O sistema mostra suas prioridades. Enquanto reincidentes brancos recebem conselhos paternais para não se misturarem com um “delinquente” como Elwood, ele é jogado no reformatório. E Nickel não é só uma instituição: é um monstro vivo. As instalações para brancos lembram um campus universitário; as dos negros, uma prisão decrépita. Pior ainda é ver crianças ali, muitas condenadas a nunca sair.
O reformatório é um anacronismo brutal. Não passa de um campo de trabalho disfarçado, onde jovens negros são explorados como seus ancestrais nos campos de algodão. Castigos físicos, abusos sexuais, violência sistêmica – a escravidão apenas trocou de nome. Até o esporte é ferramenta de opressão. As lutas de boxe, usadas para enriquecer os administradores, remetem às lutas de mandingo de Django Livre. A “reabilitação” proposta ali transforma “vermes” em “campeões”, ou melhor, escravos obedientes.
A jornada de Elwood dentro de Nickel não é solitária. Turner (Brandon Wilson), outro interno, surge como um contraponto. Enquanto Elwood encara a realidade com esperança, Turner é pragmático. Aprende a usar as falhas do sistema para garantir sua sobrevivência. É ele quem revela a verdade sobre os desaparecimentos dos internos “problemáticos”. Sua própria trajetória é apresentada em flashbacks, expandindo a visão limitada da narrativa de Elwood. Mais que complementares, Elwood e Turner são duas faces da mesma moeda. Se Elwood se espelha em Martin Luther King, Turner carrega um pouco de Malcolm X—não por ser combativo, mas porque não consegue enxergar um futuro conciliador ou esperançoso. Ele entende que o mundo não está disposto a mudar.

Fora dos muros, Hattie luta por justiça. Suas economias são roubadas por um advogado oportunista que finge se importar com a causa do neto. Aunjanue Ellis-Taylor entrega um dos momentos mais potentes do filme ao refletir sobre a curta trajetória dos homens de sua família enquanto corta um bolo. A dor está ali, latente, mas as lágrimas já secaram. O ato de cortar não simboliza só o bolo, mas as vidas ceifadas pelo racismo estrutural.
Quando a investigação sobre Nickel vem à tona, o filme nos apresenta a versão adulta de Elwood. Mas, em vez da câmera subjetiva, agora o vemos apenas de costas. Um homem marcado por décadas de dor. Daveed Diggs brilha na atuação, carregando uma angústia silenciosa na postura e na voz.
Elwood e Turner são espelhos quebrados de um sistema que destrói qualquer possibilidade de futuro. Nickel não se contenta em prender corpos – quer matar almas. E ainda assim, Ross evita o fetiche pelo sofrimento. A violência nunca é espetacularizada; ela é sentida nos olhares, nos sons, no silêncio. O impacto da barbárie vem pelo testemunho dos próprios protagonistas, não pelo voyeurismo gráfico.
O desfecho destroça qualquer ilusão de redenção. Mas, nos momentos finais, encontramos refúgio novamente nos braços de Hattie. Porque, em um mundo que pode ser brutal, é o amor que nos impede de sermos engolidos pela escuridão.
O Reformatório Nicky foi assistido no Amazon Prime Vídeo

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.
2 comentários em “O Reformatório Nickel”
Para mim, foi um filme que tinha tudo para ser uma história reflexiva e profundamente transformadora em um mundo que precisa “se ver” para pensar sobre o que vê, mas que é MUITO CHATO de se assistir.
Lento, confuso, com trechos nas entrelinhas, assuntos soltos e nada nunca concluído. O diretor nos diz que a câmera foi posicionada para que “o espectador possa sentir o que o protagonista sente”, mas este recurso, neste filme, tornou-o chatíssimo, porque não nos permite criar a menor conexão com o protagonista, que é mostrado quase que em flashes e recortes mal selecionados. Vamos sendo conduzidos a mais imaginar do que acompanhar o filme e o protagonista, o que, a meu ver, mais afasta que aproxima o espectador. A cena em que o jovem é espancado chega a ser angustiante, não pela situação, que deveria ser o foco, mas por umas fotos estanques de uma pessoa encostada em um vidro embaçado. Sem base. Fui até o final para saber do final, não que tenha me prendido ao roteiro.
Pelo filme, e pelas avaliações aqui, o livro parece ser ainda pior. Este tipo de leitura, lenta e repetitiva, não me atrai.
Curioso… pra mim esse filme foi tudo menos chato. Mas a experiência é individual. Talvez por não se conectar à forma do filme, você tenha tido essa percepção. Quanto às pontas soltas, não vejo nenhuma que seja problemática. Por se tratar de uma narrativa que se constrói sob a perspectivas de seus protagonistas, se pressupõe que estes não sejam oniscientes e, portanto, tenham uma noção turva ou fragmentada dos fatos. Eu gosto de narrativas que nos apresentam informações difusas e que nos conectam aos personagens por meios menos expositivos, ou pelo minimalismo de gestos e momentos…mas gosto é gosto…