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Quando Chega o Outono

3/5

Quando Chega o Outono

2024

102 minutos

3/5

Diretor: François Ozon

O Oscar de 2025 premiou a subversão do sonho americano através do interrupto conto de fadas de uma profissional do sexo com Anora, de Sean Baker. O diretor americano busca trazer um olhar humano sobre esse grupo marginalizado pela sociedade conservadora dos Estados Unidos. No velho continente, François Ozon se apropria do tabu que a profissão tem dentro da esfera familiar para construir sua trama. A prostituição já havia sido temática do diretor em outras produções. Em Jovem e Bela, Ozon traz o ingresso de uma jovem nesse meio após sua primeira relação. Em seu mais recente filme, Quando Chega o Outono, toma como ponto de partida a relação abalada pela vergonha entre Michelle (Hélène Vincent), uma prostituta aposentada, e sua filha que está passando por um divórcio.

Ozon segue sua cartilha de não revelar explicitamente suas intenções. O primeiro ato do filme nos apresenta a rusga que existe entre mãe e filha, que parece manter contato com a mãe apenas devido à relação desta com o neto, Lucas, e aproveita para arrancar-lhe algum valor em dinheiro. Existe uma aspereza nas falas de Valérie (Ludivine Sagnier) para com sua mãe que produz um incômodo genuíno no espectador. Essa indisposição da filha, a princípio, se mostra descabida. Michelle aparenta preocupação com a filha, e sua relação com o neto é muito afetuosa. Mas o envenenamento com os cogumelos colhidos por Michelle nos deixa com a pulga atrás da orelha.

Ludivine Sagnier volta para mais uma parceria com o diretor 20 anos depois de Swimming Pool (Imagem: Divulgação)

O desenrolar da trama vai nos apresentando elementos que deixam em xeque a inocência da matriarca. Dada a indisposição existente entre mãe e filha, o envenenamento de Valérie com os cogumelos colhidos e cozinhados por Michelle torna-se a desculpa para impedir que Lucas passe as férias junto da avó. Ainda que tenha sido avisada por sua amiga Marie-Claude da presença de cogumelos venenosos, é questionável se a matriarca estava ciente dos que pretendia colocar no cozimento. O diretor consegue plantar essa dúvida em nossas cabeças quando coloca Michelle vacilante durante o preparo da refeição.

O caráter de Michelle é colocado à prova principalmente com a chegada de Vincent (Pierre Lottin), filho de Marie-Claude, que estava cumprindo pena. Vincent é acolhido por Michelle como um faz-tudo. Pequenos trabalhos como cuidar do jardim e limpar a garagem fazem parte da rotina de Vincent, que, fora do horário de serviço, aparenta manter atividades criminosas. Uma visita a Valérie culmina na morte da mesma, que acaba sendo encoberta por Michelle.

A questão da prostituição é o principal motivo de ruptura entre mãe e filha, que revela ter vergonha do passado da mãe. O desprezo de Valérie parece se estender a Marie-Claude, que tinha o mesmo ofício que a amiga durante a juventude, e a Vincent, por sua estada na prisão. São as próprias idosas que levam à tona sua incompetência na criação dos filhos: uma tem um filho que foi para a prisão e tem grandes chances de voltar, e a outra tem uma filha que a procura apenas para pedir dinheiro, apesar de morar no antigo apartamento da mãe na capital.

Ozon nos coloca em um conflito interno para decidir se a morte foi uma fatalidade ou se foi provocada por Vincent. Ao mesmo tempo que parece proposital para que o neto passe a morar com ela, vemos desenvolver-se uma relação paternal entre Vincent e Lucas e uma maternal entre Michelle e seu funcionário. Existem carências que são preenchidas nessa dinâmica dos três e, em acréscimo, vemos Michelle questionando a própria culpa e suas faculdades mentais durante uma consulta médica. Não ajuda o fato de que, cada vez mais, ela parece conversar com o fantasma da filha. Seria um sintoma de um distúrbio mental crescente ou uma manifestação de remorso? Ozon, claro, não entrega essa resposta de bandeja, nos deixando apenas com a angústia da dúvida.

A dinâmica nessa nova configuração familiar – mãe, filho emprestado, neto – acaba se tornando mais envolvente que o próprio thriller. Mais uma vez, o diretor brinca de subverter gêneros, apropriando-se da busca pela resolução do caso para desenvolver um drama familiar e existencialista. A presença de uma policial insistindo na investigação passa a ser determinante para o verdadeiro teor do filme. E não, não acredito que seja sobre o que causou a morte de Valérie e quem está envolvido.

Vincent como um filho emprestado para Michelle (imagem: divulgação)

Ozon inicia seu filme com uma missa. O sermão é sobre o questionamento de um fariseu sobre o acolhimento de Jesus a Madalena. A sabedoria deixada no sermão é sobre o julgamento para além das aparências. E acredito que é aí que reside a resposta para o final em aberto deixado pelo diretor. Valérie e a investigadora são incapazes de enxergar além de uma ex-prostituta e um ex-presidiário. Ambas as personagens representam o fariseu e a sociedade de uma maneira geral. Michelle e Vincent são um duplo – uma dinâmica que tenho notado se repetir no cinema – duas figuras com passados estigmatizantes. Uma mãe que perde a filha e um filho que perde a mãe. Por fim, temos Lucas, que, ainda que seja uma testemunha-chave do dia da morte de sua mãe, escolhe não denunciar o novo amigo. Acredito que o menino exerça o papel de Jesus dentro da parábola e, do ponto de vista social, represente a mudança da sociedade através das novas gerações – a segunda chance também.

Dito isso, não acredito que o diretor escolha o cinismo ou a cumplicidade de uma criança em manter um cenário que o favoreça, ainda que a morte da própria mãe tenha sido o preço a se pagar. Acho que o diretor deixa aqui sua cartilha sobre recomeços, não julgamentos e o direito a uma segunda chance. E, se o retorno do fantasma de Valérie no clímax sugere algo, talvez seja o fechamento de um ciclo de aceitação e perdão. Um aceno final antes que o passado se dissipe, assim como o cheiro dos pães franceses que pareciam tão apetitosos na mesa, mas que por vezes roubaram nossa atenção do filme. Afinal, quem nunca se perdeu no conforto de uma casa de vó?

Quando Chega o Outono estréia nos cinemas no dia 27 de março de 2025.

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