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Mickey 17

3.5/5

Mickey 17

2025

136 minutos

3.5/5

Diretor: Bong Joon-ho

Eu acho que ficou claro depois de mais de cem textos que eu me posiciono à esquerda no espectro político. Sempre que o filme abre uma reflexão, eu deixo meus comentários críticos sobre o capitalismo e as mazelas que ele produz. Sendo assim, acompanhar o cinema de Bong Joon-ho é sempre um terreno fértil para textos recheados com esse tipo de comentário. Confesso que, como muitos, o meu despertar para o cinema autoral do diretor coreano se deu com Parasita. O filme que quebrou protocolos do Oscar traz uma trama visceral centrada na luta de classes. Ainda que já tivesse assistido a Memórias de um Assassino, o nome do diretor não havia ficado tão marcado no meu repertório. Mas a experiência com Parasita foi tão arrebatadora que me senti em êxtase para buscar seus outros filmes.

Sua estreia em Hollywood me despertou curiosidade, apesar de ressalvas. Afinal, estar sob as rédeas de estúdios e em terras estrangeiras poderia estrangular um pouco a veia crítica que o diretor possui. Bong Joon-ho chega ao ocidente com um projeto bastante ambicioso: Mickey 17, uma adaptação do romance Mickey7 de Edward Ashton. O filme contou com um orçamento estimado em US$ 150 milhões, equiparando-se a produções de grandes estúdios como os blockbusters da Marvel. Foi uma grande aposta da Warner, considerando a temática e por se tratar de um filme de gênero. Mas o investimento substancial se baseou no histórico do diretor, que teve êxito ainda que não comparado à sua magnum opus.

Mickey 17 traz nomes de peso como Mark Ruffalo, Toni Collette, Steven Yeun e Robert Pattinson, que vive Mickey, um agente descartável em uma missão de colonização interplanetária. O longa já começa colocando o protagonista em uma situação de morte iminente no novo planeta enquanto narra como as escolhas comerciais ruins levaram ele e seu sócio Timo (Steven Yeun) a embarcar no projeto para fugir da cobrança de agiotas. Enquanto seu amigo virou piloto, Mickey escolheu ser um “descartável”, um indivíduo que tem sua consciência transferida para uma cópia do corpo impressa a cada vez que a anterior morre. O problema é que Mickey 17 (sim, a 17ª reprodução dele mesmo) acaba não morrendo e retorna para a base onde se depara com a 18ª cópia. Infelizmente, é proibido duas cópias coexistirem e, a punição para isso, é o extermínio de ambas.

Robert Pattinson nos entrega duas performances excelentes enquanto Mickey 17 e 18. Enquanto um tende a uma inocência que beira o infantil, o outro é frio e agressivo. Apesar de partirem da mesma matriz, eles funcionam como duas faces da mesma moeda, ou simplesmente, duplos. Essa dualidade é reforçada através da dinâmica que evolui para um triângulo amoroso com Nasha (Naomi Ackie), que já se relacionava com 17, e encontra em 18 o parceiro sexual ideal. Mas a discussão de Mickey 17 vai muito além da coexistência de duplos.

Pattinson ao quadrado: 18 e 17 ou duas faces da mesma moeda. (Imagem: Divulgação)

Mickey 17 é uma sátira política a respeito do neoimperialismo e da desumanização da força de trabalho. A descartabilidade e o não reconhecimento do sofrimento de Mickey em seu laboro é algo que beira a psicopatia. Ainda que o filme ilustre suas diversas mortes de forma “divertida” pelo exagero ou pelas situações inusitadas, esse elemento também é um aceno aos comentários em defesa dos direitos dos animais, como o diretor já havia feito em Okja.

O filme constrói uma analogia poderosa entre os Creepers, habitantes nativos do planeta Niflheim, e grupos minoritários historicamente oprimidos pelo imperialismo. Niflheim, nome retirado da mitologia nórdica, é um planeta coberto de gelo onde os Creepers, à primeira vista, parecem ameaçadores. Com sua aparência que mistura croissants deformados com ácaros gigantes, eles evocam repulsa inicial, mas se revelam essenciais para a sobrevivência de Mickey 17. Seus filhotes, fofos e inofensivos, reforçam essa desconstrução da ameaça percebida. A relação entre os humanos e os Creepers espelha a opressão sofrida por tribos africanas e ameríndias, vítimas da expansão colonialista sob justificativas de progresso e civilização.

Kenneth Marshall, interpretado brilhantemente por Mark Ruffalo, é o arquétipo do líder autocrático: estúpido, mas extremamente perigoso. Sua persona lembra figuras como Donald Trump, seja na tentativa de projetar uma masculinidade artificial ou no temperamento explosivo. Mas ele também ressoa com os coachs farsantes das redes sociais e líderes religiosos demagogos – a trindade do apocalipse contemporâneo. Sua esposa, Yifa (Toni Collette), muitas vezes parece ser a mente por trás do homem, dominando a nave com sua obsessão pelos Creepers. Sua vilania remete à Cruella De Vil, mas em vez de alta costura, seu fascínio se volta para a gastronomia – ou melhor, para a perversão alimentar, reduzindo a culinária a um simples molho. A crítica de Bong Joon-ho aponta para os hábitos alimentares industrializados, levantando questões sobre a ética do consumo e a exploração animal.

A postura imperialista da nave não é movida pela necessidade de sobrevivência, mas pelo desejo insaciável de explorar todos os recursos possíveis até seu esgotamento. A analogia com o expansionismo capitalista é inegável, especialmente quando o genocídio dos Creepers é equiparado à política de extermínio de povos indígenas e à atual situação na Faixa de Gaza, sob o governo de Netanyahu.

Por fim, Mickey 17 incorpora uma jornada messiânica. Mickey se sacrifica repetidamente, expondo-se a doenças, radiação e outras ameaças pelo bem-estar da tripulação. Suas ressurreições constantes o transformam em uma figura quase cristológica, culminando no seu calvário em uma câmara de isolamento, onde apenas Nasha o acolhe. Essa cena, aliás, funciona como um pastiche da Pietà de Michelangelo, reforçando a imagem de um corpo devastado e desamparado em seu sofrimento. Kenneth Marshall se encaixa como um fariseu ou falso profeta, manipulando sua posição para manter o status quo e explorar a classe trabalhadora. Enquanto ele e Yifa desfrutam de instalações luxuosas e alimentação ilimitada, os demais tripulantes vivem com racionamento extremo – uma ilustração crua do abismo de classes.

Ruffalo e Collette como o casal antagonista. Atenção ao uniforme militar do político sem patente. Deslumbres de mais um golpe? (Imagens: Divulgação)

O fato de a narrativa se passar em uma colônia espacial apenas amplia a crítica ao expansionismo predatório do capitalismo. Marshall, com sua promessa de salvação interplanetária, se assemelha a figuras como Noé e Elon Musk, combinando messianismo com interesses comerciais. No entanto, a grande ironia é que os Creepers não são alienígenas – os verdadeiros invasores são os humanos. No fim das contas, a distopia de Bong Joon-ho não é um futuro improvável, mas um reflexo ampliado e satírico da realidade contemporânea. Frente à emergência climática e ao negacionismo político, Mickey 17 utiliza a ficção científica para nos lembrar de que a exploração desenfreada sempre cobra seu preço.

O problema de Mickey 17 não está em optar pela comédia em vez de um tom mais austero, como o de Parasita. O humor sempre foi uma marca autoral de Bong Joon-ho, e sua habilidade em equilibrar sátira e tensão já se provou antes. A questão é que, ao tentar abarcar tantas camadas críticas e reflexões sociais, o filme perde o olhar sobre o indivíduo e ignora as consequências psicológicas desse esvaziamento da humanidade. Além disso, personagens secundários como Timo e Nasha são apenas peças descartáveis no tabuleiro da trama, com arcos que se resolvem mais por conveniência do que por construção narrativa. A questão do triângulo amoroso entre a agente de segurança e os dois clones se resumiu em carências afetivas e fetiches apenas. Timo sempre foi só um canalha oportunista? Nasha realmente evoluiu ou apenas se tornou a nova face de um sistema problemático?  Mickey 17 pode até render uma boa conversa pós-créditos sobre suas analogias políticas, mas, no fim, parece mais preocupado em se ouvir do que em dizer algo realmente contundente.

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