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Todo Dia é Dia de Feira

2.5/5

Todo Dia é Dia de Feira

2025

2.5/5

Diretor: Silvia Fraiha

Como morador do subúrbio carioca, fazer feira é um compromisso semanal garantido. E não tem discussão: o café da manhã de domingo é pastel — sou cria da feira da Basílio (feira do Cachambi). Eu só troco o caldo de cana pelo mate porque é meu shot de cafeína que me mantém acordado. Não tem competição. É na feira onde você encontra os produtos da terra mais frescos. Mas ela é mais que isso. Por aqui, tem um quê de evento social. Eu, por exemplo, sempre acabo esbarrando com um conhecido — quase sempre alguém que estudou comigo e ainda mora pelo bairro — ou marcando uma resenha com os amigos nesse momento que é um respiro, apesar de estar dentro das obrigações da vida adulta. Eu ainda procuro ser mais objetivo, já não exploro toda a extensão dela porque já tenho as barracas que vou sempre. Sim, se você frequenta a feira, já definiu seus feirantes de estimação. Tem gente que já gosta de passear, apesar da multidão, e conhece e conversa com todos, como se fosse um político em ano de eleição — meu pai é desse tipo.

Essa relação, embora pontual, se repete com a precisão de uma consulta marcada. E, com o tempo, o feirante acaba te conhecendo também: sua rotina, sua família, seus gostos. Tudo isso por meio de dois dedos de prosa trocados semanalmente, enquanto você escolhe o que vai levar pra casa.
Em Todo Dia É Dia de Feira, Silvia Fraiha inverte essa dinâmica: nos coloca diante de figuras como Arnaldo, Luiz, Fernando e Cristina — personagens que, de tão presentes no dia a dia da cidade, já fazem parte da paisagem. Mas aqui ganham tempo, voz e profundidade. Enquanto compartilham suas histórias de vida, nos deixam compartilhar de seus corres diários, os bastidores intensos de um ofício quase invisível e o peso da desigualdade social que atravessa essa rotina — uma realidade que atinge mais de oito mil famílias só no Rio de Janeiro. Carregam a responsabilidade de suas famílias e, indiretamente, das nossas, sem perder o sorriso do rosto ou o brilho do olhar.

Aos poucos, vamos entendendo que aqueles rostos familiares são, na verdade, sobreviventes de um sistema que insiste em empurrá-los para as margens. Trabalhadores que resistem ao abandono com resiliência. Quase sempre pertencem a uma minoria vulnerabilizada, levando uma vida humilde, mas dignificada pelo trabalho. Apesar de nenhum suporte do poder público, garantem a manutenção de suas famílias, e a feira é onde foram acolhidos. Mas é um trabalho que cobra o tempo de vida como moeda de troca. É extenuante — suas rotinas começam antes do sol. Os feirantes compartilham histórias de luta, mas também de dor. O descaso estatal se repete quando não existe nenhum apoio no próprio lugar de trabalho. A feira não possui uma entidade fiscalizadora, nem que promova o mínimo de condições de dignidade, como um banheiro público, por exemplo. Quando questionado a respeito desse abandono, o então secretário de urbanismo Washington Fajardo tenta transferir a responsabilidade para os particulares. Sugerindo até mesmo a existência de um “produtor de feira” — que baba… deixa quieto.
Fora que seus questionamentos evidenciam sua total falta de familiaridade com a feira popular. Provavelmente nunca tomou um pastel com caldo de cana e deve pedir frutas e legumes por aplicativo. Sua presença em tela só me proporcionou a alegria de saber que já foi exonerado de seu cargo.

Ainda que identifiquemos a poesia que reverbera nas feiras livres da cidade, precisamos reconhecer que este não é um refúgio utópico ou um conto de fadas. Dessa maneira, a abertura do documentário soa ingênua com sua fotografia estourada e outras artificialidades. Inclusive, é uma decisão desarmônica se levarmos em consideração que este é um espaço do “natural” e que, posteriormente, se revela nada encantador para aqueles que de fato fazem a feira acontecer.
É inegável a reverência que a diretora faz a esses trabalhadores tão necessários e, ao mesmo tempo, tão invisibilizados. Silvia faz questão de agigantá-los no quadro, posicionando-os sempre em destaque. Ainda que esses sejam abrilhantados pela beleza de seus produtos, fica claro o reconhecimento deles para além de suas atividades econômicas — como guardiões de uma cultura muitas vezes passada dentro da própria família. Se suas histórias de vida refletem sua criatividade em domar as adversidades e vender o peixe, o formato do documentário não consegue fazer jus.
A diretora até flerta com a ousadia na escolha de planos zenitais menos ortodoxos ou com tomadas aéreas que demonstram o caos ordenado dos corredores do CEASA. Mas o que predomina é a dominância de cabeças falantes, com uma ou outra imagem de apoio. Até a trilha sonora parece óbvia e um tanto anacrônica. Mais uma vez, aquele chorinho pra imprimir uma simpatia, mas que soa desafinado comparado ao dinamismo desenfreado desses espaços.
Só mesmo nessas feiras elitistas da Zona Sul você vê a clientela desfilando tão a passeio. As feiras cariocas ocupam terrenos que ultrapassam os cenários das novelas de Manoel Carlos. Outro equívoco é a escolha da diretora em dar voz à narração em off. Existe entusiasmo em seu projeto, mas que não é sentido pela monotonia de sua voz.
E, por falar em voz: temos as vozes dos feirantes que gritam suas ofertas, mas cujas reivindicações não conseguem ser ouvidas. O documentário até se esforça em ser um grito de denúncia. Mas, no geral, parece ter nascido sufocado.

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