O meu último texto sobre um filme da Marvel foi carregado de decepção. Assistir a Capitão América – Admirável Mundo Novo quase me fez desistir dos filmes da “Casa das Ideias”. Esperei, de um produto de massa coordenado por um “Ken” — Kevin Feige — o posicionamento de um Martin Luther King Jr. ou de um Malcolm X renascido. Fui juvenil, confesso. Me deparar com um Sam Wilson condescendente, que acaba virando babá do Hulk Vermelho, conseguiu ser pior do que a maquiagem de repolho do Líder. Que bom que tenho apreço por anti-heróis e resolvi dar mais uma chance ao MCU: fui conferir Thunderbolts*.
Sou fã dos quadrinhos da equipe e fui de peito aberto, pronto para receber algo bem diferente do produto original. Estava ciente de que quase nada do material de base seria trazido para a tela — e tudo bem (Até desapeguei do Barão Zemo, que ficou muito bom na pele do Daniel Brühl). O resquício de esperança vinha da experiência que tive com filmes de equipes menores que não se levavam a sério… Guardiões da Galáxia, no caso.
Thunderbolts* reúne antigos anti-heróis e antagonistas de outras produções do MCU. Uma forma de reciclar esses personagens foi colocá-los numa trama onde atuam como “lixeiros” de Valentina (Julia Louis-Dreyfus), mas que descobrem ser, na verdade, o próprio lixo que ela precisa eliminar para escapar de um impeachment. O filme flerta com Esquadrão Suicida ao montar uma equipe com “um bando de desajustados, párias, perdedores e pessoas que realmente não estão à altura de super-heróis” — descrição usada por David Harbour durante entrevista. E quem começa se apresentando é Yelena Belova (Florence Pugh), a irmã adotiva da Viúva Negra original. A personagem de Pugh já introduz o subtexto do filme quando ensaia um divã com um soldado inimigo.
A primeira reunião da nova Viúva Negra com o Agente Americano (Wyatt Russell), Fantasma (Hannah John-Kamen) e Treinadora (Olga Kurylenko) segue o protocolo de lutas bem coreografadas, que exaltam o estilo de cada um dos mercenários. A forma como descobrem ter sido usados e descartados por sua contratante também não traz nenhuma novidade. Mas a maneira como interagem entre si é o diferencial do projeto. Além do escapismo da armadilha que funciona como uma bomba-relógio — o que sempre acrescenta uma dose bem-vinda de tensão — temos uma sequência de deboches, apontamentos de falhas e dedos na cara que fogem da cartilha de heróis bem-educados. Para falar a verdade, superam até o cinismo do Tony Stark de Downey Jr. Valentina também não fica de fora quando o assunto é ironia: a antagonista, quando em cena, entrega boas tiradas com seu humor ácido.

O tom do humor é bem diferente do que a Marvel vem experimentando desde o deplorável Thor: Ragnarok. O pastelão é deixado de lado em favor de um senso de humor mais agressivo. Isso permite que o filme seja coeso com sua proposta. Centralizando a narrativa em ex-antagonistas, soaria um tanto hipócrita exigir que eles se comportem como escoteiros. O descompromisso em machucar inimigos e a dúvida que paira entre os próprios colegas de equipe trazem um tempero à narrativa. Mas uma das cerejas do bolo foi me deparar com piadas sobre tamanho do órgão masculino. Sim! O filme não possui os filtros morais das demais produções. E, com essa liberdade criativa, a mais recente produção da Casa das Ideias para os cinemas se mostra bem honesta e madura.
A princípio, os membros dos Thunderbolts* estão dispostos a matar uns aos outros e aos seus inimigos. Como dito anteriormente, a bússola moral não é o ponto forte desses indivíduos. Até o Guardião Vermelho, que tenta emular uma paternidade com Yelena, é reflexo do abandono parental e do narcisismo nostálgico com o tempo em que tinha alguma relevância no mundo dos heróis. Somente Bob (Lewis Pullman) está realmente disposto a se sacrificar pelos novos amigos. Bob era mais um resíduo a ser eliminado de um projeto descontinuado de super-soldado. Aparentemente alguém a ser protegido, Bob logo mostra sua gama de poderes. E, na mira do olhar de Valentina, revela-se uma potente arma chamada Sentinela. O personagem se equipara a um deus — ou ao Superman. Mas é na vulnerabilidade emocional que ele se iguala aos colegas. Com uma diferença: seu lado sombrio não engole apenas a si, mas tudo ao seu redor.

A saúde mental é o grande subtexto do filme. E o Vácuo, uma entidade que funciona como a materialização da depressão de Bob, se revela o verdadeiro vilão. Todos os personagens de Thunderbolts* são desajustados que carregam questões emocionais profundas. Até mesmo o passado de Valentina nos é mostrado, como forma de humanizar a personagem e estimular um olhar empático para com ela. Afinal, todos ali são resultado de algum trauma. Dessa maneira, o Vácuo se mostra muito mais do que uma mera sombra do novo herói.
Thunderbolts* é certeiro na forma como lida com o assunto. A sutileza com que vai apresentando o subtexto, revelando as cicatrizes de seus personagens por meio de uma revisita aos piores momentos de suas vidas — como numa sessão de terapia que se inicia com um simples toque — é precisa. A manifestação do Vácuo é mais agressiva, pois assim também é uma crise profunda de depressão: apesar de dar sinais prévios, se desencadeia como uma bomba e preenche todos os espaços com sua destruição. Falo isso com lugar de fala, pois também sou paciente psiquiátrico e já me deparei com a entidade sombria da depressão.
É visível que Thunderbolts* é o filme de destaque de Yelena, mas sem ser um filme solo. Embora o arco dramático da personagem seja o mais didático e desenvolvido, o longa não cai na armadilha de descartar os demais personagens ou negá-los participação no desfecho. Já que estamos falando de uma coleção de desajustados, nada mais justo que uma sessão de terapia em grupo. Talvez a única figura mais deslocada seja o Soldado Invernal, que está claramente desconfortável dentro da trama — ainda que seja um dos primeiros personagens do MCU a seguir esse tipo de desenvolvimento, já encerrado, inclusive. Sua presença parece ser um mero afago à cota de fãs InCell que o meio nerd insiste em proteger e que não toleram protagonismo feminino.
Thunderbolts segue o mesmo caminho de sucesso de Guardiões da Galáxia Vol. 3. É um filme de anti-heróis que sabe o momento de não se levar a sério e de não seguir cartilhas morais ou ortodoxas em suas resoluções de problemas. O humor é o maior indicativo disso. Mas o que poderia ser uma fraqueza — ao entregar uma trama repetitiva e piegas de redenção — acaba se tornando uma força: o filme aposta em densidade e percorre vias ainda mais sombrias do que o esperado. Ainda bem.
Thunderbolts* estreou nos cinema no dia 1º de Maio e 2025.

JORNALISTA, PUBLICITÁRIO E CRÍTICO DE CINEMA. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.