Sempre me identifiquei com os personagens da Disney que, à primeira vista, são vistos como problemáticos. Gosto de brincar que, se fosse pra escolher três que me representam, seriam a Fera, o Raiva… e o Stitch. Sempre tive um temperamento mais explosivo, com rompantes mais ásperos. Mas sempre me incomodou não conseguir ser entendido na totalidade — ou precisar emular uma personalidade diferente da minha para agradar. Acaba que essa leitura afobada sobre mim tem um pouco da minha aparência abrutalhada. De perto, sou bem mais dócil (risos). Só não lido tão bem com frustrações, injustiças e excessos de estímulo. Gosto de pensar que boa parte dessa energia vulcânica é usada pra acolher e proteger aqueles que tenho estima, embora eu deslize na falta de paciência.
Mas este texto não é exatamente sobre mim. É sobre Lilo & Stitch — um filme que, apesar do título, orbita questões que extrapolam os dois nomes da capa.
O filme já estabelece uma relação com a ruptura da calmaria pelo caos em sua cena inicial, quando vemos a fauna oceânica invadida por um sanduíche — Lilo estava indo alimentar o Fofuxo. A menina e seu futuro melhor amigo ditam o ritmo da narrativa, que é quase sempre de muita agitação em suas desventuras pela ilha. A câmera frenética nos coloca como vigias da pequena enquanto descobrimos o mundo através de seus olhos. Lilo é uma menina que não se comporta como as demais. Seu excesso de energia se dissipa entre curiosidade, alegria e, às vezes, em seus rompantes de raiva diante de frustrações e injustiças.
É curioso como o filme faz, ainda que de forma sutil, um aceno para questões sociais. Lilo é uma nativa da ilha, mas ainda assim é vista como uma figura alienígena — quase uma intrusa — nos espaços que frequenta, dominados por turistas. Quando tenta se aproximar do grupo de meninas da aula de hula, sua presença é questionada por uma delas — uma menina branca regulando o acesso de uma não-branca. São situações que fazem de Lilo uma forasteira em sua própria casa.

Se Lilo incomoda, Stitch provoca medo. O pequeno alienígena foi projetado para ser uma arma de destruição com capacidade de se autoaprimorar. Não à toa, no julgamento galáctico, é chamado de Experiência 624. Nosso pequeno Frankenstein fofo escapa da sentença roubando uma nave. Apesar da inteligência, fica claro que Stitch é movido por um instinto primitivo, e seus rompantes de destruição surgem como reações à frustração — quase como pensamentos intrusivos que bloqueiam qualquer senso de autopreservação. Nesse sentido, Stitch funciona como um duplo de Lilo.
Ainda assim, o processo de amadurecimento dos dois é distinto. Lilo desenvolve um senso de responsabilidade ao cuidar de Stitch — um bichinho de estimação nada convencional. Stitch, por outro lado, passa por uma virada de chave que desperta empatia, mas esse momento, apesar de emocionante, é abrupto.
O roteiro do live-action reduz significativamente o tempo de tela da dupla para priorizar personagens secundários. As icônicas imitações de Elvis, que na animação original funcionavam como respiro cômico e aprofundavam o vínculo entre as personagens, foram relegadas a um easter egg nos créditos finais — mais como gancho pra vender boneco do que homenagem à obra original.
O drama familiar é mais presente nessa nova versão. O filme nos permite acompanhar de forma mais próxima o cotidiano das irmãs — cuja relação muitas vezes se confunde com a de mãe e filha. A personagem de Nani ganha camadas: conhecemos seu histórico como atleta de surfe e o sonho de cursar biologia marinha na Universidade de San Diego. O passado no surfe é melhor explorado, com parte do treinamento sendo incorporado à narrativa. Já o interesse pela biologia marinha se restringe ao panfleto da faculdade, que volta e meia é resgatado do lixo.

Conversando com meu amigo Rafael Henriques, do Cabine Secreta, concluímos que a dupla Lilo e Stitch conecta o filme à infância e ao público mais novo. Mas é Nani quem estabelece uma ponte com os adultos — a geração que cresceu e agora lida com frustrações. O filme não aprofunda a morte dos pais, mas gosto de imaginar que talvez tenham sido vítimas da pandemia de COVID. Não por necessidade de tornar tudo atual, mas porque a pandemia escancarou o quanto o turismo fragiliza os nativos — e o isolamento moldou o comportamento de uma geração inteira de crianças. O isolamento social, enquanto fenômeno, paira como subtexto do filme.
Gosto de pensar que Lilo & Stitch nos convida a observar a ilha como Nani observaria um ecossistema marinho em sua pesquisa. Existe ali um conflito entre comunidade e individualidade, e a expansão do conceito de Ohana — que quer dizer família, e família quer dizer nunca abandonar ou esquecer — é parte essencial disso. Mas Lilo ainda é criança. Repete o mantra sem entender o peso da responsabilidade que a irmã carrega. Com a perda dos pais, Nani herdou o compromisso de criar Lilo e precisou sacrificar seus próprios desejos para manter unida a família que restou. A sobrecarga é evidente. E a chegada de Stitch só agrava isso.
Nani e Lilo são órfãs em mais de um sentido. A comunidade local foi fragilizada pela lógica do turismo. A ilha virou resort. As construções visam o passageiro, não as raízes. Ao invés de serem acolhidas pela coletividade, vemos Lilo invisibilizada num espaço que só atende quem está de passagem.
A atuação do Estado nesse processo de desamparo é retratada por dois personagens: a assistente social Sra. Kekoa (Tia Carrere), e o agente Cobra Bubbles (Courtney B. Vance), agora um agente da CIA. Kekoa é compreensiva, acolhedora, representa um Estado maternal. Cobra, por outro lado, é pragmático e visa apenas a missão. No desenho original, ambos eram um só personagem — agora, fragmentados, tornam o conflito mais explícito. No fim, ambos funcionam como uma nova referência paternal e maternal para as irmãs.
A decisão de dar mais tempo de tela a Nani foi acertada. Principalmente ao explorar o peso da responsabilidade sobre o outro. Stitch, em um momento, quase afoga Lilo ao tentar se salvar — ele é mais denso na água. Nani, por sua vez, treinava apneia carregando pedras no fundo do mar. Seu corpo domina o peso. Stitch impõe. O clímax do filme, com Stitch se sacrificando para que Lilo não se afogue, faz rima visual com Titanic e emociona pela força da imagem.
A dinâmica dos dois pequenos agentes do caos continua divertida — como quando Stitch destrói cidades de areia como um Godzilla azul. Mas o humor perde força com os alienígenas Jumba e Pleakley em forma humana. Zach Galifianakis (de quem sou fã desde Se Beber, Não Case) perde sua acidez. Já Billy Magnussen abraça uma caricatura que não combina com o charme do original.

Ao contrário de Cobra Bubbles, que foi dividido em dois, Jumba aqui incorpora também o papel de Gantu, o caçador de Stitch. A escolha é funcional, reduz interferências paralelas. E os visuais humanos desses personagens servem provavelmente para contornar limitações dos efeitos especiais. Ainda assim, os portais e alguns elementos digitais soam artificiais. O cuidado parece ter se concentrado apenas em Stitch.
Lilo & Stitch não tenta ser uma cópia da animação de 2002. Ele acerta ao aprofundar o drama das irmãs, mesmo que sacrifique parte do encanto da dupla original. A mensagem permanece: ninguém é deixado para trás, apesar de suas imperfeições. Mas o que antes era dito com leveza, agora carrega mais densidade — porque crescemos, e porque o mundo também ficou mais pesado.

JORNALISTA, PUBLICITÁRIO E CRÍTICO DE CINEMA. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.