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Crítica | O Apartamento

O Apartamento

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O falecimento de Abbas Kiarostami no ano passado e a condenação de Jafar Panahi a um banimento de 20 anos impedido de filmar, o que não o tem impedido de trabalhar clandestinamente, é bom frisar, colocaram sobre os ombros de Asghar Farhadi a honra e o fardo de ser o cineasta iraniano mais renomado no circuito internacional. Responsável por À Procura de EllyO Passado e a obra-prima vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro, A Separação, o cineasta fez por merecer a expectativa e o burburinho gerados sempre que anuncia um novo projeto. É o caso de O Apartamento, que disputou a Palma de Ouro de Cannes e levou para o Irã os prêmios de melhor ator (Hosseini) e roteiro do festival, além de ser um dos semifinalistas ao Oscar do próximo ano – no qual certamente integrará a lista de indicados. Tanto pedigree desperdiçado em uma narrativa que vacila justo nos atributos que Farhadi mais domina: a habilidade de construir narrativas dramáticas e tensas movidas pela força dos diálogos e a exaltação do papel da mulher na cultura muçulmana.

Mas não é por falta de oportunidade que o roteiro de O Apartamento não deslancha: a trama apresenta o casal de atores Emad (Hosseini) e Rana (Alidoosti), em cartaz com a adaptação teatral de A Morte do Caixeiro Viajante, e locatários do apartamento de Babak (Karimi), que, a despeito de ameaças, despejou os pertences da antiga moradora, de moral questionável segundo a narrativa. Certa noite, Rana, acreditando que é o marido na porta, displicentemente deixa-a aberta e, para sua infelicidade, é estuprada por um intruso misterioso que deixa para trás pertences pessoais – inclusive um carro -, pegadas ensanguentadas e uma ferida dolorida que jamais cicatrizará. Aturdido e revoltado, Emad dispensa notificar a polícia e engendra uma investigação por conta própria na tentativa de descobrir o autor do crime – o que não é difícil porque sabe a placa do seu carro – enquanto tenta acalentar a esposa, manter o emprego de professor e estrelar a montagem teatral.

Em um caminho similar ao do ótimo O Silêncio no Céu, a narrativa relaciona a fragilidade emocional e sexual de Rana, e a consequente dificuldade de lidar com o trauma, e a honra ferida de Emad, provocada por haver falhado em cumprir uma imposição social da sociedade muçulmana que confere ao homem o papel de protetor da mulher. É a diferença principal entre este e a co-produção Brasil e Uruguai, pois nesta, o personagem de Leonardo Sbaraglia, a testemunha ocular do estupro da esposa, era guiado pela cumplicidade de quem poderia ter feito algo para impedir o crime e a consequente vergonha de sua própria covardia em meio à tentativa de reconciliação com a esposa. As razões íntimas deste eram bem mais convincentes do que as de Emad porque, na maior parte do tempo, ele soa como um grande machista, embora não reconheça isto: ao indagar “quantos homens estiveram naquele quarto” ao locador ele expõe uma faceta ainda mais acentuada quando sugere a Rana “tomar um remédio para dormir” para lidar com a dor, como se medicamentos bastassem para sarar a alma.

Isto revela-se uma ironia tremenda justo depois de justificar o tratamento brusco de uma mulher contra si de modo comedido e racional: “pode ter certeza que algum homem foi mal-educado com ela antes”. Se é capaz deste tipo de observação e de criar personagens femininas fortes e autônomas dentro de narrativas circunscritas – como fizera outras vezes -, decepcionou-me constatar que Farhadi está mais preocupado em ilustrar as consequências do crime do ponto de vista de Emad do que de Rana, através de um suspense pouco gratificante que esbarra em conclusões absurdas, sobretudo quanto à identidade e ao estado de saúde do agressor.

Concomitantemente a isto, Farhadi ensaia conectar o drama com o desenrolar da montagem teatral, embora ambas pareçam conversar em línguas diferentes e assim jamais encontrar um ponto de consenso senão no desequilíbrio emocional de Emad que contamina – ou instiga – a sua interpretação.

E apesar de, como em todos os trabalhos anteriores do diretor assim como nos dos principais autores da nova onda do cinema iraniano, não haver espaço para sentimentalismo gratuito, mas sim para o retrato nu e cru da situação em tela, inspirado no neorrealismo e adaptado ao contexto iraniano, é triste asseverar que O Apartamento não alcança o elevado padrão de qualidade associado a Asghar Farhadi, mesmo porque mediano ou medíocre não é um adjetivo que poderíamos esperar do principal cineasta iraniano em atividade.

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