Narrando fatos ocorridos em meados da década de 20 até a proximidade da 2ª Guerra Mundial, em 1939, este drama histórico nos apresenta o Duque de York, Príncipe Albert e os problemas de expressão – leia-se gagueira – que o levaram a consultar o especialista da fala Lionel Logue. Encarando o microfone como o vilão da projeção da primeira cena, na qual o príncipe deve discursar para uma platéia enorme em Wembley, até praticamente o último quadro, o roteiro historicamente preciso de David Seidler é prejudicado por realizar concessões demais em prol da comédia. Ao invés de mergulhar na dimensão geopolítica dos crescentes conflitos mundiais e à iminência da 2ª Guerra Mundial (Hitler surge em uma gag em que o príncipe elogia sua eloquência), o roteiro estimula o riso nos exercícios vocais do príncipe e na excentricidade de Logue. Outro aspecto ligeiramente desprezado e enxergado com trivialidade é a escandalosa renúncia do Rei Edward VIII por ir contra às determinações da igreja Anglicana no casamento com uma socialite americana divorciada.
Demasiadamente cômico nas folhas de papel, o diretor Tom Hooper (um dos favoritos ao Oscar, mas porque exatamente?) e sua equipe adotam um estilo narrativo diametralmente oposto à comédia. A começar da fotografia de Danny Cohen abusivamente londrina nos detalhes da neblina e utilizando uma paleta de cores frias. O mesmo se aplica à trilha sonora de Alexandre Desplat e à direção de arte de Eve Stewart que acerta nos suntuosos e intimidadores espaços do palácio de Buckingham e no empobrecido consultório de Lionel Logue evidenciado pelas paredes sem pintura e o bolor evidente nos sofás.
Tom Hooper abusa de recursos acadêmicos, empurrando Edward à direita da tela em sinal de sua autoridade durante o primeiro encontro com Logue, só para, no quadro seguinte, o enviar ao lado esquerdo inferiorizado justamente após abrir a boca, denunciando a sua vulnerabilidade e insegurança. Mas falta à narrativa uma lógica que sustente os enquadramentos e mise-en-scène do diretor. Como explicar a ansiedade em chamar a atenção em planos que colocam os personagens em um dos cantos do quadro, a carência de alinhamento em outros e as vezes em que a face do personagem é cortada sem o menor sentido? E poucas vezes vi um filme com tanta ausência de enquadramentos tradicionais como este.
Mas os defeitos da direção equivocada e no pouco ambicioso roteiro de David Seidler são atenuados por um elenco afinadíssimo em todos os aspectos. A começar por Michael Gambon (Rei George V), que em duas breves participações ilustra a austeridade daquele homem que acabou se revelando um dos causadores da gagueira do príncipe, e Guy Pearce (Rei Edward VIII), que mesmo quando revela um carinho ao irmão acaba subjugando-o, as vezes até acidentalmente.
Enquanto isso, Helena Bonham-Carter (Rainha Elizabeth) dedica-se ao marido no olhar de confiança que passa a ele ou no ar de tristeza, mas não de decepção, ao vê-lo fracassar em um discurso em público. Geoffrey Rush cria o melhor personagem em cena na figura do especialista em fala Lionel Logue, um entusiasta de Shakespeare, e “velho demais” para participar do teatro, que confere uma energia contagiante a cada cena, desde à insistência em chamar o príncipe de “Bertie” – e que rende uma boa piada quando a Rainha Elizabeth conhece a sua esposa – à maneira com que conduz o tratamento do príncipe. Apesar da impessoalidade, Logue jamais esconde o respeito e admiração ao príncipe tornando fácil aceitar a amizade entre os dois homens.
E chegamos a Colin Firth, um ator que desde o início da carreira era monótono, monocórdico e aborrecido, até a sua atuação vulnerável O Direito de Amar. Aqui, o ator novamente está muito bem na ilustração não apenas da gagueira do príncipe, mas na composição de diversos traços que ajudam a compreender a dificuldade na fala como consequência natural da baixa auto-estima e passividade em sua vida pessoal. Ao ser confrontando, Firth não apenas fraqueja na fala, como seus olhos imediatamente viram para baixo, em sinal de subserviência. Além disso, suas explosões e gritos surgem de maneira natural retratando a raiva de sua própria inadequação. Finalmente, o tropeçar nas palavras surge de maneira contida, e vejam a diferença entre imitar um gago (Guy Pearce o faz em determinado momento para gozar do irmão) e “ser” um gago, e aí estará a complexidade na atuação de Firth.
Tecnicamente irrepreensível na reconstituição de época, O Discurso do Rei, alavancado por excepcionais atuações, é “apenas” um filme bom, quadradão e comum. Um compromisso agradável a todas os espectadores, mas inferior a quase todos os outros concorrentes em Melhor Filme.
Avaliação: 3 estrelas em 5.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
6 comentários em “Crítica | O Discurso do Rei”
Firth também sempre me pareceu um pouco sem expressão e exatamente igual em todos os filmes. O direito de amar não assisti pra ser sincersa, comecei a ver e achei um pouco chato, mas confesso que sua atuação em O discurso do rei me surpreendeu!
Gostei do filme, do roteiro, dos atores, mas não gostaria que ganhasse o oscar de melhor filme.
Seria uma piada de mau gosto da Academia premiar um filme tão sem sal como esse no páreo com outros grandes do quilate de Cisne Negro, A Origem, Toy Story 3 ou A Rede Social.
Até me questiono se Firth realmente é o melhor ator do ano, ou se Bardem não está muito mais complexo e chamativo no Biutiful ou o Franco (eu preciso ver 127 Horas)!
Torci muito o nariz. Acho que não estão bem atribuídos os óscares.
Dar o Oscar de melhor filme para O Discurso do Rei foi a piada mais sem graça do Oscar 2011, poderia ir com o público dando para A Origem, sendo correto dando pra Cisne Negro ou inovando dando para Toy Story 3 (ambos excepcionais)… assim como Firth – como citado – fica abaixo do Bardem e até do – pasmem – James Franco, que segurou um filme excepcional.
Na minha opinião: Cisne Negro e Rede Social foram os melhores.
O Discurso do Rei não é, de formal alguma, um filme ruim.
Contudo, foi tão agraciado no Oscar de 2011 que estou, a cada ano, menos feliz com a Academia, que insiste em eleger filmes tecnicamente normais, de narrativa relativamente antigas.
Minhas apostas no Oscar eram: O Discurso do Rei(filme), Cisne Negro (diretor) e Minhas Mães e Meu Pai (roteiro original).
Mas nem tudo é perfeito …