Em determinado momento de Rango, o Homem sem Nome, personagem mais clássico da filmografia de Clint Eastwood, surge em cena dirigindo um carrinho de golfe com o que parecem ser estatuetas do Oscar e segurando um detector de metais enquanto busca mais ouro. Ele faz um breve discurso sobre o papel de cada um na construção da sua própria história e, na maneira quase delirante com que surgiu, some na poeira do deserto. É irônico como esta cena, aparentemente a única referência direta e menos orgânica na narrativa, parece nos dizer tanto sobre a recente escassez de faroestes em Hollywood ao deparar com um dos ícones maiores do gênero – o outro seria John Wayne – buscando algo similar a um “punhado de dólares” sem a aventura característica e intrínseca que tornou famoso os bang-bang.
Assim, é satisfatório como os diretores estão corrigindo esse equívoco, recorrendo a uma mídia moderna para homenagear e subverter um dos gêneros mais tradicionais do cinema. Desta vez, o versátil diretor Gore Verbinski apostou na animação para atrair jovens e, principalmente, adultos em uma aventura sobre um camaleão com crise de identidade (quão sagaz e sutil é esta definição!), que após se perder no deserto adota o nome de Rango em uma cidadezinha típica do velho oeste.
Apostando na bagagem cinematográfica do espectador, Gore Verbinski é inteligente ao jamais inserir referências de maneira evidente e gratuita. Portanto, quando Rango é atirado no para-brisa de um carro, imediatamente nos recordamos de Johnny Depp e Benicio Del Toro na aventura surreal Medo e Delírio. A caracterização de Jake Cascavel também é sutil e seu bigode remete imediatamente ao de Lee Van Cleef, vilão máximo das produções de Sergio Leone.
Por falar no mestre italiano, a trilha sonora de Hans Zimmer recorda e aproveita os acordes de Ennio Morricone de clássicos como Três Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste. O trabalho do compositor ainda introduz a Cavalgada das Valquírias que, mais lembrada no ataque aéreo de Apocalypse Now, encontra reflexo em uma das melhores cenas da animação, e ainda reencena a clássica trilha de Pulp Fiction ao som de banjo e viola.,
Aliás, todos os elementos de Rango estão diretamente associados à recriação do espírito do velho oeste. Neste sentido, o trabalho de Mark McCreery é exemplar, desde os quadros do gabinete do prefeito intimidando os visitantes desafortunados, à ferrugem do grande relógio e à sujeira existente na cidade, convenientemente chamada de Poeira. Toda a produção dos personagens animais merece elogios, como o médico coelho sem uma das orelhas, o peru com a flecha atravessada na cabeça, a águia com um bico de metal.
No mesmo sentido, a fotografia, com a consultoria do espetacular Roger Deakins, também demonstra personalidade ao retratar a aridez de uma cidadezinha cujo maior bem é a água. Outro bom momento da fotografia está no sábio uso de fachos de luz e sombras ao retratar o interior da taverna ou a luz das tochas ao adentrar uma perigosa caverna.
Evitando piadas óbvias e recorrendo a um humor eventualmente mais adulto – as crianças se divertirão bem mais pontualmente e graças a momentos bonitinhos com as paralisias de Feijão -, o roteiro de John Logan cria um terreno fértil (hum, sarcasmo e trocadilho) para o desenvolvimento da personalidade do protagonista. Assim, a frustração em buscar uma identidade acaba esbarrando na inércia dos coadjuvantes, quando tenta atuar em um aquário, ou na periculosidade de uma situação anunciada pelas corujas mariachis como mortal. Portanto, é de uma enorme inteligência que John Logan evite apelar para a habilidade de um camaleão em camuflar-se (o protagonista tenta apenas uma vez, sem sucesso), e use isto como metáfora para alguém buscando seu próprio caminho.
Complementando o bom trabalho do roteirista, Gore Verbinski surpreende mais uma vez, demonstrando um enorme talento em se adaptar ao material ao invés do oposto. Logo, é fascinante observar um diretor que comandou a trilogia Piratas do Caribe, o infantil O Ratinho Encrenqueiro e o romance A Mexicana, adentrar com competência no ritmo contemplativo e na ação caracterizada por olhares ameaçadores e duelos de pistola, e sair-se tão bem na empreitada.
Prova de que o universo de animações não gira apenas em torno da Pixar, mas de realizadores criativos e decisões acertadas, realmente é cedo para dizer, mas em um ano de continuações pouco inspiradoras como Kung Fu Panda 2 ou Carros2, este versátil camaleão pode surpreender.
Avaliação: 4 estrelas em 5.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Crítica | Rango”
Assisti Rango e me surpreendi positivamente, como você mesmo disse é bom saber que boas animações não giram somente em torno da pixar. É uma otima animação com otimas piadas e com um personagem bastante carismático.