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Crítica | Entre Segredos e Mentiras


Durante toda a narrativa de Entre Segredos e Mentiras, a personagem de Kirsten Dunst busca desvendar a personalidade do antes amoroso marido, agora distante e retraído, e a frustrada tentativa de adentrar no âmago do homem que divide sua cama encontra reflexo na mórbida curiosidade dos espectadores em acompanhar relatos nos noticiários de sociopatas e psicopatas. Muitos fomentam o desenrolar de ações criminosas apenas assistindo ao noticiário na mídia, dando a audiência necessária para a cadeia de televisão investir pesadamente em novos casos sensacionalistas e chocantes, e nesse sentido, mesmo contrários à violência, inconscientemente, a acolhem. Similar destino tem a espirituosa Katie pois, mesmo no ápice da doença de David e nas suas manifestações mais viris, ele não se desvencilha da curiosidade de meter o nariz na história da família.

Alicerçado por atuações poderosas, Entre Segredos e Mentiras ilumina a trajetória de um psicopata cuja gênesis reside no testemunho do suicídio da mãe na infância e na constante pressão paterna. Baseado em uma história real, o diretor Andrew Jarecki vale-se de um grande flashback no depoimento prestado por um David envelhecido contando o trágico destino do casamento. Esta decisão é ousada, pois ao desviar a atenção do espectador do caso em si e a apontar para o quando (e contra quem) David virá a cometer o crime que o colocou em face da justiça, ganhamos um belo estudo de personagem ao invés de um suspense tolo.

Interpretado por Ryan Gosling, ator promissor que remete ao estilo Sean Penn de atuação, David é dono de uma mentalidade doentia desenvolvida com sutileza e parcimônia. A princípio, gentil, embora não deixemos de reparar que existe algo, inominado, errado com ele, o cabelo arrumado no gel, às armações de óculos que o intelectualizam e o figurino desinteressante e cinza parecem apontar para um sujeito que sabe esconder muito bem os conflitos internos na maneira aborrecida de se vestir. Gradualmente, ações pontuais ilustram o desequilíbrio do sujeito: ele fala sozinha; depois tem uma discussão ríspida com Katie que quer ser mãe; os acesso de raiva se tornam mais frequentes, momento em que o diretor Jarecki dá o quadro totalmente para um David ensandecido.

Assustador ao repetir as mesmas palavras do pai na primeira fuga de Katie e dissimulado no tom de voz manso e olhar carinhoso na dolorosa afirmação de que a esposa “teria sido uma boa mãe”, David é um monstro capaz de sepultar a doçura da esposa na triste realidade da qual se sentia morbidamente compelida a permanecer. Por sua vez, Kirsten Dunst oferece uma atuação quente, na alegre notícia de ter sido aceita em uma concorrida faculdade de Direito ou na cumplicidade com que se dedica ao marido. Naturalmente boa, a moça busca as raízes em sua agradável família e que, mais uma vez, opõe-se aos frios Marks personificados na figura patriarcal do imponente e áspero Sanford (Frank Langella) que rege com punho de ferro a empresa e a família na retórica dominadora – o timbre da voz controlado a hábitos nada cavalheiros.

Através de imagens envelhecidas de arquivo, a narrativa extraí a nostalgia em que o futuro parecia menos sombrio. Assim, o diretor acerta em cheio na montagem paralela que remonta à cobrança realizada por David e um gesto brutal cometido por Katie, e a sua decisão de ilustrar a elipse do tempo através de um cartaz afixado no poste demonstra a velocidade com que tragédias caem no esquecimento do imaginário sedento por novidades. A fotografia de Michael Seresin abandona as cores na paleta fria e impessoal, ao mesmo tempo em que apresenta o cristalino lago visto da janela da casa dos Marks como a melancólica ilusão da proximidade de um casamento feliz que jamais se concretizaria.

Retrato complexo e analítico do nascimento de um monstro e da dedicação de uma esposa em revelar um mistério, Entre Segredos e Mentiras representa mais do que o comportamento doentio da sociedade em se fixar por tragédia. É também uma reflexão apurada sobre em que momento estamos prontos a mudar o canal e ignorar tudo aquilo que nos atormentou minutos antes.

Avaliação: 4 estrelas em 5.

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2 comentários em “Crítica | Entre Segredos e Mentiras”

  1. Márcio, devo dizer, que pela primeira vez fiquei feliz ao ler uma critica de cinema. Parabéns pela narrativa envolvente e coesa. Salvo um pequeno equivoco ao mencionar o curso da personagem Katie. Um abraço. Edvânia

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