21) O Vira-Casaca (Skrydlate Swinie, Polônia, 2010). Direção: Anna Kazejak-Dawid. Roteiro: Anna Kazejak-Dawidm Doman Nowakowski. Elenco: Pawel Malaszynski, Piotr Rogucki, Olga Boladz, Karolina Gorczyca, Cezary Pazura. Duração: 99 minutos.
Após contextualizar as espécies de torcedores poloneses (os picnic, os ultra e os hools) e apresentar o Czarni, time fundado em 1948 na pequena cidade de Grodzisk e recém rebaixado à segunda divisão, O Vira-Casaca parecia começar uma interessante e bem-humorada discussão acerca do fanatismo de torcedores que, aflitos para roubar a bandeira do time adversário, sequer sabem o resultado da última partida disputada por seu time. Porém, as boas intenções da narrativa caem por terra diante das constantes e imprevisíveis mudanças de tom (que nem o diretor de fotografia Michael Englert consegue compreendê-las direito) e na constante perda de foco de um filme que tenta agarrar mais do que as mãos podem segurar.
Assim, Oskar (Pawel, uma espécie de Josh Holloway, o Sawyer de Lost, polonês) é um dos torcedores mais fanáticos do Czarni, que é surpreendido com o nascimento do filho e uma proposta de emprego do time rival para transformar a sua torcida em uma das mais fanáticas da Polônia. Adstrito a este conceito, o filme poderia ir longe e é fácil observar isto através de oportunos paralelos, como a fusão do cântico de uma igreja e o hino de uma torcida. Não é, porém, o caminho que traça a diretora Anna Kazejak-Dawid. Apresentando diversas subtramas que, ao invés de enriquecerem os personagens, desviam o foco da ação, o filme não sabe bem se é um drama, um romance ou uma comédia e as tentativas de equilibrar os tons díspares soam desengonçadas e atrapalhadas.
Dessa maneira, ao assumir consequências graves e perigosas para a traição de Oskar e da ex-namorada do seu irmão, Basia (Boladz), ressaltado em alguns atos de bullying e violência desmedidos, o filme perde a linha querendo enfiar goela abaixo do espectador um envolvimento amoroso forçado, briguinhas bobas de Oskar e a mãe de seu filho, Alina (Gorczyca), e a participação breve do pai que estranhamente desaparece de cena no momento que seria mais exigido.
Portanto, ao invés de iluminar a rotina dos violentos hooligans e destrinchar seu código de honra, O Vira-Casaca satisfaz-se em ser de tudo um pouco, e a frustração na ridícula cena do ônibus (é impossível não comparar com a pior comédia romântica norte-americana) é o suficiente para descartar definitivamente este fraco, e promissor, exemplar polonês.
20) Amanhã Nunca Mais (Idem, Brasil, 2011). Direção: Tadeu Jungle. Roteiro: Tadeu Jungle, Marcelo Muller, Maurício Arruda. Elenco: Lázaro Ramos, Maria Luiza Mendonça, Fernanda Machado, Milhem Cortez. Duração: 74 minutos.
Walter (Ramos) é um médico paulistano diariamente submetido à panela de pressão do estresse do trânsito e do hospital onde é médico anestesista residente e que o impede de dormir há dois dias. No dia do aniversário de sua filha, ele se oferece para buscar o bolo da festa da garota sem saber que a sua exagerada subserviência e incapacidade de dizer Não iriam lhe proporcionar um dia inesquecível, na pior forma possível.
Desenvolvido como uma espécie de Um Dia de Fúria, sem evidentemente a bazuca e trajando o jaleco branco, inoportunamente confundido com o traje dos enfermeiros, Amanhã Nunca Mais é uma crítica ao estilo de vida caótico e implacável das grandes cidades, maltratando os seus habitantes a viverem escravos de uma rotina desgastante, engessados nos excessos de uma metrópole. Dessa forma, o diretor estreante Tadeu Jungle captura os estímulo visuais, as luzes de neón e a iluminação intensa, bem como os sonoros, especialmente as nefastas buzinas dos carros, e consegue traçar um perfil adequado do estado psíquico de seu protagonista.
Homenageando Fellini e o clássico 8 1/2 no claustrofóbico e sufocante engarrafamento, onde sequer um balão consegue escapar, Jungle apresenta alguns excessos de estreante, principalmente em enquadramentos deselegantes ou sem propósito narrativo, como aquele que revela os pés do protagonista na praia ou no dormitório do hospital. Mais feliz é a tomada do retorno antecipado da praia e a montagem que transforma essa experiência de Wálter em um tormento, desde a sogra controladora a um sujeito flertando com a sua esposa. Apesar disso, é repetitivo o esforço dos montadores Estevan Santos e Jon Kadoska nos planos em que Wálter diz que algo é impossível de fazer, para no corte seguinte estar fazendo-o.
O roteiro escrito a seis mãos restringe-se a pitorescos acontecimentos, como uma cirurgia mal feita, o atropelamento de um motoqueiro e um casamento judeu (!), e nesse universo, coadjuvantes de luxo como Milhem Cortez (o colega médico narcisista), Maria Luiza Mendonça (uma ex-moradora de sua rua) e Luís Miranda (o motoqueiro) roubam a cena e impõem um gigantesco peso nas costas de Wálter sempre que se dirigem a ele. Por sua vez, Lázaro Ramos, ator competente e talentoso, enfatiza a fragilidade de seu personagem no gaguejar e na articulação precária de idéias, na postura curvada e na ausência de contato visual com os interlocutores. Aliás, o próprio óculos aqui desempenha uma fraqueza que é bem explorada, ao menos em dois momentos, pela narrativa.
Enquanto isso, a fotografia de Ricardo Della Rosa é excepcional, capturando a tensão e o nervosismo nos menores detalhes da expressão de Wálter e conferindo vida a uma metrópole movimentada e agitada como São Paulo.
Encerrando com uma rima temática inteligente na velocidade dos carros nas ruas, que contrasta com o ritmo acelerado dos créditos iniciais, Amanhã Nunca Mais é rápido, tenso, ágil e engraçado, símbolo de que Tadeu Jungle é um talento a se observar atentamente.
19) Toast (Idem, Inglaterra, 2010). Direção: S. J. Clarkson. Roteiro: Lee Hall. Elenco: Freddie Highmore, Victoria Hamilton, Ken Stott, Oscar Kennedy, Helena Bonham Carter. Duração: 96 minutos.
Toast é uma deliciosa fábula gastronômica sobre a juventude do renomado chef de cozinha Nigel Slater que, interpretado por jovens carismáticos (Kennedy, na infância; Highmore, na adolescência), transforma a culinária em uma escada para o amadurecimento emocional e a descoberta de sua vocação e paixão, e a cozinha no ambiente propício para competição, nem que seja apenas de quem faz o merengue de limão mais gostoso.
Filho de pais controladores e germófobos, que consumiam apenas produtos enlatados e industrializados e não in natura ou artesanais e jamais conseguiam preparar uma refeição nutricialmente equilibrada, Nigel demonstra desde criança o talento e a fascinação pelo mundo gastronômico. Desconstruindo suas figuras paternas através da metáfora da torrada, Nigel enxerga sua mãe como uma pessoa gentil e carinhosa que o conquista diariamente da maneira mais simples (e por isso, bela); já o pai, apesar da casca dura, tem um coração amanteigado. Eles não formam particularmente uma família convencional, apesar de, conforme mencionado, “famílias normais serem superestimadas”, especialmente no cinema britânico.
Com a morte da mãe, porém, Nigel e seu pai não conseguem re-estabelecer o convívio familiar, enfatizado na incapacidade de ambos de produzir uma refeição adequada. Para preencher essa lacuna, Mrs. Potter (Helena Bonham Carter) é contratada para cuidar dos serviços domésticos e cozinhar iguarias e manjares para a família, fomentando a antipatia de Nigel e estimulando-o a rivalizar com ela pelo coração (err, digo, o estômago) do pai.
O diretor S. J. Clarkson usa contrastes e rimas narrativas combinados com a excelente fotografia de Balazs Bolygo, que em tons sépias nostálgicos recria os anos 80, e a eficiente montagem, permitem acompanhar o amadurecimento da sensibilidade gastronômica e afetiva de Nigel. Assim, Mrs. Potter eleva-se justamente por suas habilidades culinárias, mas o simples ato de ser fumante é um insulto e desaforo à mãe que morrera de problemas pulmonares.
Investindo em uma composição adequadamente exagerada, abusando dos figurinos coloridos e florais, e onde os serviços domésticos surgem ora como apologia sexual, ora como uma terapia, é uma pena que Helena Bonham Carter não possa investir no passado de sua personagem. Da mesma maneira, é uma covardia vilanizá-la, e a apresentação de uma foto que a leva às lágrimas, e que apenas atiça a curiosidade do público, é uma decisão grave e ruim do filme.
Por outro lado, o elenco é espetacular: de Victoria Hamilton e seu charme delicado e doce de mãe, a Ken Stott, um pai duro e rigoroso, mas com momentos calorosos, e especialmente, a dupla de jovens que vive Nigel em duas fases de sua vida. E é gratificante observar como Highmore preserva alguns elementos da composição de Kennedy, como o olhar sonhador e o caminhar moroso.
Finalmente, a montagem de Liana Del Giudice é dinâmica desde os criativos créditos iniciais às ótimas elipses: a primeira, uma sequência quase onírica na qual Nigel tem a sua própria loja de conveniências; a outra retratando o amadurecimento do garoto a partir da quantidade de refeições que Mrs. Potter elabora.
Dessa maneira, Toast é o equivalente a um prazeroso merengue de limão, adocicado e levemente azedo, como é as nossas vidas. Um manjar de filme.
18) Cuba Libre (Idem, Brasil, 2010). Direção: Evaldo Mocarzel. Roteiro: Evaldo Mocarzel, Willem Dias. Duração: 72 minutos.
O documentário Cuba Libre, através do enfoque no retorno da atriz transexual cubana Phédra, que desde 1955 não pisava em Havana, propõe uma discussão sobre a diversidade sexual e a luta pela igualdade de direitos na rígida e socialista Cuba. Assim, nos primeiros 30 minutos somos apresentados àquela figura que é “louca por rum”, “importada, mas que é do quintal” e “ambiciosa e terrível” segundo suas próprias palavras. Enquanto isso, Phédra revela seu potencial artístico ao mesmo tempo em que se demonstra apegada à memória da família e as palavras de união do seu pai. Assim, a jornada de reencontro com a sua cidade e com os poucos familiares vivos e distantes é comovente o bastante para merecer nossa atenção.
Evaldo Mocarzel e o diretor de fotografia Fabiano Pierri também voltam seus olhares ao estado de conservação da capital cubana. Durante algumas palavras de Phédra, podemos acompanhar o banho público e o estado de degradação da cidade, a sujeira do lixão a céu aberto, as imperfeições nas estruturas dos prédios e monumentos da cidade e, em um momento posterior, propagandas populistas do governo de Fidel Castro.
Todavia, o objetivo de Mocarzel não é um estudo de personagem de Phédra, mas usá-la como trampolim para uma discussão maior interessada na liberdade sexual no regime socialista, traçando um paralelo com a própria revolução cubana. Assim, o documentarista vale-se de depoimentos registrando com subjetividade o sentimento daqueles cubanos que abraçaram incondicionalmente sua opção sexual. O que rende pontos positivos, como o abuso sofrido por um durante o alistamento militar aos 16 anos, ou a menção a uma espécie de embargo sentimental sofrido por aquele povo.
Por outro lado, a ausência de objetividade e acurácia no registro de Mocarzel acaba reduzindo bastante a eficácia de sua abordagem, e é difícil montar um panorama com apenas uma meia dúzia de depoimentos e relatos. E nesse sentido, nem mesmo as apresentações da trupe de teatro Os Satyros, na qual Phédra é integrante, não conseguem mandar o espectador plenamente satisfeito com o que viu para casa, afora ter conhecido essa deslumbrante e adorável personagem!
Melhor seria se Mocarzel tivesse aprofundado e examinado a fala mais genial do projeto, “Em Cuba, a arte permite mais que a vida”, mencionada por um dos depoentes quando questionado sobre a liberdade sexual no meio artístico. Pena que ele não seguiu esse caminho.
17) Ela não Chora, Ela Canta (Elle ne Pleure pas, Elle Chante, Bélgica/Luxemburgo, 2011). Direção: Philippe de Pierpont. Roteiro: Philippe de Pierpont. Elenco: Erika Sainte, Jules Werner, Marijke Pinoy, Laurent Capelluto. Duração: 78 minutos.
A fórmula narrativa de Ela não Chora, Ela Canta é de uma simplicidade e obviedade gigantescas: após o atropelamento que deixou o pai em coma, a melhor cena de todo o filme e ouso dizer, a sua filha, Laura (Sainte), recorda e desabafa diariamente a vida de abusos que sofreu daquele homem deitado a sua frente na cama de hospital. Ao mesmo tempo, ela toca a sua vida amorosa e reencontra a mãe e o irmão.
Para que esta estrutura funcione adequadamente, era imprescindível que a Erika Sainte acertasse em cheio na composição de sua personagem e, sobretudo, levasse-nos a compreender a dor de Laura muito além do pragmatismo do roteiro. Infelizmente, a impressão é de que Sainte se esforça demais para atuar, impondo um olhar frio e semi-cerrado sempre que acuada por uma dolorosa lembrança, e dessa forma, jamais permite que a protagonista habite e surja normalmente. Basta observar que o melhor momento da moça é um grito sufocado dado em um momento de agonia, o único momento natural de toda a narrativa.
Nesse viéis, as inadequações sexuais da moça que não consegue apegar-se emocionalmente, o relacionamento problemático com a mãe e a não-tão-sutil desconfiança diante do agir do irmão, surgem como tiros na água, consequências esperadas, óbvias e, de certo forma, irrelevantes para destrinchar a personalidade fraturada da garota.
Diferentemente de Erika Sainte, Jules Werner, o intérprete do irmão Rémi, surge como o personagem mais interessante e tridimensional da narrativa. Amável e carinhoso com a irmã e ponderado e conciliador quando a situação requer, Rémi parece ter um jeito muito especial com seus dois filhos pequenos, um detalhe do roteiro que mostra que a maçã nunca caí longe da árvore, ao mesmo tempo que surge como uma espécie de correção do comportamento pedófilo e incestuoso do pai.
A direção de arte destaca-se ajudando a compreender as personalidades daquela família através da mera observação da decoração de suas salas de estar. Se por um lado, na casa de mãe, porta-retratos de fotos dos filhos bebês são comuns, o que revela que a alegria há muito tempo foi embora, e o senso de organização e meticulosidade impera, na casa de Laura, a frieza e a impessoalidade consolidam a imagem sem vida que temos dela. Alguns outros pequenos detalhes impressionam, especialmente uma foto guardada na carteira e que assume proporções assustadoras embora aparentemente inocente.
Ela não Chora, ela Canta é um retrato de sua protagonista, um estudo analítico, pouco memorável e aborrecido das consequências do abuso sexual causados por aquele que tem o dever de cuidado e proteção da família.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.