Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Search
Close this search box.

Diário do Festival de Cannes, Dia 8

Diário do Festival de Cannes, dia 8

Documentário sobre David Bowie e mais!

Moonage Daydream (2022), de Brett Morgen

Biografias vêm em formas variadas: um panorama da vida inteira de um sujeito relevante pode ser menos revelador do que o relato de um instante marcante e decisivo; um enfoque em quem são – a vida privada, as dificuldades que superaram para se tornarem quem são ou os pontos de vista políticos e sociais – pode ser mais humano do que revelar só o que realizaram – o processo criativo, os altos e baixos, a relação do que produziram com o mundo e as pessoas. Este gênero pode ser superficial o bastante para questionarmos a razão de existir ou enriquecer a memória e conhecimento do espectador a partir de fatos e facetas inexplorados.

De vez em quando, surge uma biografia que não é sobre a pessoa, no sentido de quem é, como alcançou o que alcançou ou o que fez. É mais um espelho (ou prisma) que reflete e refrata sua personalidade, seu espírito. Faz sentido que seja assim Moonage Daydream – intitulado a partir de uma das canções mais célebres de David Bowie -, pois o camaleão do rock não desejava ser refém da arte que criou e, como indivíduo, creio que ficaria feliz em assistir à obra reverente de Brett Morgen.

O diretor não é novo em biografias: depois de Montage of Heck sobre Kurt Cobain e Jane, da primatologista Jane Goodall, Brett conquistou o apadrinhamento do espólio de David Bowie – que inviabilizou a ficção Stardust em que Johnny Flynn interpreta o cantor – e pôde ter acesso a vídeos de arquivo, canções, comentários e um rico conteúdo que é trabalhado com recortes de clássicos do cinema ou jogos de iluminação para propor uma experiência de transcendência e retratar as fases da carreira de um artista autodenominado niilista – no princípio -, após otimista e romântico e, enfim, um sujeito apaixonado por estar vivo.

Brett entende o que movia Bowie e emprega suas palavras como argumentos defendidos. Não há ênfase no aspecto pessoal e artístico – uma crítica a Bowie ter se vendido surge não como conflito, mas como a etapa de uma carreira impermanente, que acolhia e entendia a mudança como um elemento essencial da experiência de estar vivo; o casamento com Iman aparece de modo breve. E o filme adota essa impermanência: a princípio, a abordagem é experimental, articula emoções e sentido pela junção de fragmentos a priori incompatíveis. Depois, emprega abordagens menos heterodoxas, mais narrativas. Faz isto com naturalidade: a mudança é parte de quem é o biografado então também deve ser um elemento narrativo para o revelar.

Há relances sobre quem Bowie era a partir de seu depoimento sobre a arte, a vida e morte, o existencialismo, mas esta biografia não é careta para lembrar deste ou daquele episódio, ou adicionar entrevistas com familiares e amigos. É uma biografia que capta a alma do artista, ao menos tenta fazê-lo, mais do que o sujeito de carne e osso que esteve na terra. Suas músicas emolduram a narrativa, a presença conforta de Bowie conforta, mas é a aura que permanece. E que sorte que vivi no tempo de Bowie.

Moonage Daydream review – glorious, shapeshifting eulogy to David Bowie |  Cannes 2022 | The Guardian

All that Breathes (2022), Shaunak Sen

Durante um trecho do documentário dirigido por Shaunak Sen, tomamos conhecimento de uma lei migratória indiana favorecendo a entrada de refugiados oriundos do Afeganistão, Paquistão e Bangladesh, mas com uma pegadinha: menos muçulmanos! A relação da lei inconstitucional com a história de dois irmãos devotados a cuidar de aves de rapina da espécie Milhafre-Preto é circunstancial e não permanece às claras até entendermos o caldeirão em que se transformou a cidade de Nova Deli, momentos antes de uma insurreição social. 

A relação, de forma poética, existe no contexto, mas não no pano de frente: as aves de rapina não eram protegidas pelas leis locais, somente as aves não carnívoras. Quem sabe assim a direção não esteja associando as aves à questão migratória e não apenas utilizando o tema social como elemento dificultador das ações dos irmãos.

O documentário é observador: não participa da ação senão através da câmera curiosa e que capta momentos que jamais poderiam ser encenados, como aquele em que uma aves “furta” o óculos de grau de um dos voluntários da clínica. O funcionamento do estabelecimento é objeto de análise: falta luz durante uma cirurgia, os medicamentos estão acabando e o freezer que os conserva está danificado. Os irmãos tentam obter investimento de um fundo internacional ou até de apoiadores locais – ou melhor, de um apoiador somente, que pode levar a questão: só há um apoiador do projeto OU o diretor não quis ou não pôde registrar os demais? Surge uma oportunidade para Mohammad estudar e se aperfeiçoar nos Estados Unidos. Será que deve ir?

Enquanto o documentário registra o trabalho paciente e cuidadoso dos irmãos, feito à base do amor, revela momentos em que são tomados pelo niilismo de um mundo na berlinda: a bomba nuclear ou a inundação dos oceanos são elementos apocalípticos introduzidos nas conversas casuais que têm. Otimismo não é a língua desses irmãos, mas mesmo em um cenário igual ao retratado, ainda assim podem realizar o bem que ninguém mais tenta fazer. 

HBO Documentary Films Buys Sundance Winner 'All That Breathes' - Variety

Tori e Lokita (2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne

Tori e Lokita são irmãos, ou não, mas isto não importa para entender o vínculo afetivo que os une. Eles vendem drogas sob as ordens de um traficante local, a fim de enviar dinheiro para a família e quitar o débito com o coiote que ajudou Lokita na imigração clandestina, enquanto esta tenta obter a cidadania para aceitar um trabalho como empregada doméstica. Como estarmos no cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne, a trajetória dos personagens-título será marcada por questões burocráticas, que provocam uma reação em cadeia na vida dos dois: Lokita aceita afastar-se por 3 meses do irmão para supervisionar, 24 horas e 7 dias, o plantio de maconha. Tori continua estudando e entregando drogas.

Adeptos de histórias em que conflitos sociais provocam a indignidade e marginalização dos personagens, os irmãos Dardenne fazem um cinema naturalista e dependente do instinto da sobrevivência e da proteção dos seus – no caso do filme. Seus personagens não buscam nada senão o mínimo existencial e não há conflito que não esteja enraizado na vivência de camadas frágeis: a criança abandonada, a mulher depressiva desempregada, o jovem muçulmano. Neste universo de histórias, a trama de Tori e Lokita lembra a de O Silêncio de Lorna – acerca de uma imigrante albanesa que buscava residência na Bélgica e se envolvia com o tráfico -, mas com uma crítica tão menos afiada quanto mais é explícita.

Tori e Lokita não merecem o infortúnio por que passam. Deveriam permanecer juntos; se não estão, é porque a política europeia de acolhimento do imigrante é injusta. Não há uma camada adocicada sobre a história, senão o afeto entre os irmãos. Isto mantém o espectador preso na força gravitacional dos eventos – não dos personagens -, e com a sensação de que sabe para onde a história está os levando, pois o mundo real não é o mundo do cinema. 

A narrativa obriga a refletir onde termina o realismo e onde começa a tortura social, diante dos “nãos” e violências por que passam os personagens. Lokita depende mais do irmão, apesar de ser mais velha. Seus ataques de pânico são a consequência da responsabilidade que assumiu. Já Tori amadureceu rápido demais, quando deveria ser apenas criança.

A estrutura da história coloca os personagens em movimento – característica comum na obra dos Dardenne -, e vulnera este atributo com o trabalho que Lokita aceita e que exige sua permanência no mesmo local ou o ferimento que sofre no pé em certo momento. As atuações baseiam-se na expressividade dos atores não profissionais e na capacidade que têm de ser os sujeitos, ao invés de só representá-los. Isto confere verossimilhança aos personagens e não à história, cujos eventos estão fundados em uma extrapolação do real, não do natural. Há algum tempo, o cinema dos Dardenne tem sido assim: ao invés de deixar as ações e reações levarem à conclusão, o contrário: a estrutura é construída para que cheguemos ao final que planejaram.

Aqui, uma lição de moral em voz alta que enfraquece o que os diretores tentaram realizar em imagens, e conseguiram com ressalvas.

Tori et Lokita | WIK tori-et-lokita Nantes

The Silent Twins (2022), de Agnieszka Smoczyńska

Após créditos iniciais criativos e que brincam com o elenco, enquanto o apresentam em um jogo de faz de conta e imaginação, The Silent Twins revela a cara do mundo real: Jennifer e June Gibbons não falam. Não porque não podem, mas porque não querem. São incomunicáveis dentro e fora de casa. Afora o bullying sofrido no colégio, desconhecemos qual o trauma – se é que há um – que as silenciou para o mundo, só não entre si. Os pais não sabem o que fazer e se mantêm como figuras distanciadas, enquadradas dentro de quadros separados – a exemplo de quando os vemos emoldurados pelo quadro de outro cômodo.

Separá-las na infância parece haver resolvido o problema, mas temporariamente. Já jovens, frequentam o ensino médio, tentam se integrar e sonham juntas em transformar em livro a imaginação revelada em animações stop motion perturbadoras e em que alguns personagens não apresentam bocas (um elemento óbvio dentro da lógica criativa, o que não reduz sua eficiência). Neste período, conhecemos o motivo por que silenciaram-se: a dicção enrolada é ressaltada nas atuações de Letitia Wright e Tamara Lawrance com efeitos contraditórios que remetem a Celie, personagem de Whoopi Goldberg em A Cor Púrpura. Um outro obstáculo surge, já apresentado na infância: as irmãs são competitivas, e em vez de se felicitarem mutuamente, apostam em agressões mútuas que revelam um possível problema moral da narrativa (só não maior em razão do pedigree do roteiro, baseado em fatos).

A diretora Agnieszka Smoczyńska (de A Atração) encara a história como misto de fábula e pesadelo, com a montagem agindo como meio de intercalação entre a iluminação quente da primeira com os tons sóbrios e ângulos austeros do real. A narrativa favorece a competente dupla de atrizes, mas prejudica a relação emocional criada com o espectador, distanciando-as de nós como se fossem curiosidades, não pessoas reais. Em certo momento, disputam o afeto de um homem branco: é de bom tom duas mulheres negras aquecendo a rixa que há entre eles só por causa dele? Acredito que não, apesar de o roteiro não arriscar debater a questão racial, a exceção de momentos pontuais – razão por que a presença de uma jornalista mal pode ser vista como o estereótipo da salvadora branca.

Se o conteúdo é misterioso, encenado de maneira turva, sobressaem-se as decisões estilísticas da direção envolvente na construção da imagem e de símbolos: na animação, um homem devora um papagaio, que antes havíamos associado às duas e ainda remete à tagarelice típica da ave. O estranhamento subjuga as relações humanas, escondendo-se detrás das virtudes da direção e da atmosfera opressiva. Só faltou confiar no espectador para criar um elo ainda mais forte com estas mulheres em cuja companhia permanecerá por 2 horas.

The Silent Twins, le regard d'Agnieszka Smoczyńska - Festival de Cannes

Nostalgia (2022), de Mario Martone

Histórias iguais a Nostalgia já foram objetos de inúmeras narrativas, em relação às quais sequer tenta se destacar este trabalho do diretor Mario Martone. Na trama, Felice retorna à Nápoles depois de 40 anos morando no Líbano e Egito, onde acumulou fortuna à frente de uma empresa de construção civil. Felice retorna à casa onde cresceu, somente para descobrir que a mãe vendeu o apartamento e mora no subsolo do edifício onde habitava. Ao mesmo tempo em que tenta corrigir os erros de 40 anos de ausência – atenuados por cartas -, Felice confessa ao padre da região a razão de ter fugido ainda adolescente. 

A relação do homem com a cidade natal é explorada pela direção com felicidade: passeamos por ruelas e bairros de Nápoles, onde nasceu o diretor, e visitamos o ontem a partir de trechos 8mm ilustrados como se fossem filmados por câmera amadora. A ideia do homem como fruto do espaço urbano não é inédita, de novo, e Mario Martone acredita que somente este vínculo é o bastante para que Felice abandone a esposa no Cairo pelo que parece ser uma questão de semanas ou meses. Se o retorno ao lar é verossímil, as ações desencadeadas, não, embora haja beleza em assistir ao reencontro de Felice e a mãe ou a crítica na tentativa de o padre em converter Felice ou forçá-lo a pecar contra a religião muçulmana bebendo álcool. 

Com efeito, Nostalgia é um tipo de filme mediano que é até difícil encontrar palavras. Eu gosto da atuação central de Pierfranceso Favino, a princípio na defensiva antes de se apaixonar por aquilo que identifica Nápoles enquanto passeia nas ruelas a noite, e também do momento que a direção proporciona junto com Tommaso Ragno: é uma conversa que remete ao melhor momento de Fogo contra Fogo, em que vemos antigos amigos, de lados opostos, discutindo o passado, a culpa, o futuro. 

Só que essa cena é uma armadilha para o restante de um roteiro, pois, concluída, a sensação é de que os 20 e tantos minutos restantes servem apenas como um epílogo demasiadamente longo. Salvo se Nostalgia resolver com o único desfecho possível e previsível, qualidade que o filme usa e abusa. 

Nostalgia de Mario Martone (2022) - Unifrance

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

1 comentário em “Diário do Festival de Cannes, Dia 8”

  1. Pingback: Diário de Bordo do Festival de Cannes, dia 8 • Cinema com Crí­tica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

Críticas
Marcio Sallem

The Old Oak

O diretor britânico Ken Loach não dosa as

Críticas
Marcio Sallem

Verlust

Um drama sobre indivíduos que vivem em uma

Rolar para cima