35) A Ilusão Cômica (L’Illusion Comique, França, 2011). Direção: Mathieu Amalric. Roteiro: Mathieu Amalric, baseado na peça de Pierre Corneille. Elenco: Muriel Mayette, Suliane Brahim, Loïc Corbery, Cyril Hutteau, Alain Lenglet. Duração: 80 minutos.
Uma das maiores frustrações causadas pelo cinema é a destruição das expectativas, não prévias, mas nascidas no seio da própria narrativa. Nesse sentido, A Ilusão Cômica, segundo trabalho do ator Mathieu Amalric como diretor, acaba ingenuamente com o artifício proveniente do lirismo e ritmo dos diálogos, que recitados em poesia, nunca encontram uma correspodência visual igualmente marcante.
Orientados a
“acreditar apenas no que se vê”, o roteiro inadvertidamente pede que ignoremos a única coisa boa na narrativa (os diálogos), o que parece traduzir-se em um tiro no pé. Além disso, o espectador é enganado pelo porteiro do hotel (Hervé Pierre), pois a recomendação inicial parece não surtir qualquer efeito prático. Por sua vez, a narrativa é absurdamente simplória, acompanhando a desesperada tentativa de reconciliação de um pai com um filho que abandonou há 10 anos, enquanto acompanha uma historinha de amor sem graça e apelo popular.
A ilusão cômica do título provém da natureza inconstante e imprevisível de Clindor (Corbery) trajando simultaneamente as máscaras da comédia e da tragédia. Portanto, ele é o simulacro da narrativa, dissimulado na estirpe de um determinado La Montagne e confundindo e punindo o seu pai (Lenglet). O conceito é promissor; a narrativa, simplória e visualmente desinteressante, pois Amalric, fascinado pela riqueza dos diálogos, cega-se e mantém a composição de quadros, a fotografia e a mise-en-scène de uma obviedade irritante. A obra de Corneille pedia algo não-linear, que fosse inovador e inusitado, e Amalric apenas consegue provocar bocejos na apresentação dos personagens e na dinâmica dos relacionamentos.
No final, a ilusão cômica, os conselhos do mago, a busca incessante do pai pelo filho pelos monitores de um hotel, uma arma cujo propósito é posto na mão de alguém de maneira afobada em prol da tragédia e um final que, longe de ser surpreendente e revelador, acaba diminuindo qualquer efeito narrativo provocado, não conseguem esconder que A Ilusão Cômica é uma grande bobagem!
Apenas soando bonito para os ouvidos, pois sequer a lengendagem esforça-se em reproduzir parcialmente a bela e admirável poesia.
34) Em Algum Lugar esta Noite (Somewhere Tonight, Estados Unidos/Holanda, 2011). Direção: Michael Di Jiacomo. Roteiro: Michael Di Jiacomo. Elenco: John Turturro, Katherine Borowitz, Lynn Cohen. Duração: 85 minutos.
O ator John Turturro é hábil ao emanar um charme na solidão dos seus personagens desde seu icônico papel em
Barton Fink – Delírios de Hollywood, e neste
Em Algum Lugar esta Noite, ele descobre a melancolia necessária para a busca por uma companheira em um serviço de disque-sexo. Centrado quase que exclusivamente nos seus dois protagonistas, Wooly (Turturro) e Patti (Borowitz) e no diálogo dos dois, este
é um tocante trabalho sobre a importância da comunicação e de outro ser humano que nos entenda; ultimamente, é a prova do caráter gregária de nossa espécie e da incapacidade de mudar sem a ajuda do próximo.
Assim, narrativamente simples, mas com uma estética visual interessante, este trabalho do diretor e roteirista Michael Di Jiacomo surpreende, emociona e diverte nos diálogos inusitados que refletem as personalidades de Wooly e Patti. Ele é carente, incapaz de superar as cicatrizes do bullying sofrido na infância e que cuja incapacidade amorosa no telefone é explicada economicamente quando afirma “elas disseram umas coisas, eu disse outras, …, e elas desligaram”. Ela, agarofóbica, sonha com uma vida que jamais alcançará, presa no seu apartamento cujas janelas estão tapadas por jornais e o pricipal relacionamento foi durante 6 anos, trocando correspondências com alguém em Kuala Lumpur.
Di Jiacomo conquista o público no bate-papo despreocupado dos dois e no desenvolvimento da amizade de pessoas infelizes aguardando ansiosamente a sua vida começar. Wooly é mais engraçado e tem algumas tiradas geniais, muitas provavelmente improvisadas por Turturro. Logo, ao descrever o seu cachorro Incrível Helmut dizendo “quando eu o peguei, achei que tinha potencial”, ele inconscientemente sublinha a sua incapacidade de atingir algo extraordinário. Por outro lado, o mapa que reveste o sofá da casa de Patti é irônico, apresentando um mundo que aquela mulher certamente não o conhecerá.
A estética visual baseia-se na limitação da própria narrativa e recorre aos aparentemente óbvios planos divididos, mas que encontram os personagens encarando-se ou olhando em direções opostas, dependendo justamente do teor da conversa que encerram. Além disso, a fotografia de Thomas Kist é oportuna ao apresentar a vida de Wooly de maneira desinteressante e pálida, enquanto Patti é vista na luz do sol abafada pelos jornais, idealizada (observe como após uma ação de libertação no terceiro ato conseguem transformar a moça em alguém igualmente comum).
Dizendo muito de como somos covardes, culpando os outros pela nossa não-felicidade, Em Algum Lugar esta Noite é minimalista, mas trás o melhor do teatro para o cinema: a riqueza das palavras e os sentimentos convergidos nelas.
33) A Terra Ultrajada (Terre Outragée, França/Ucrânica/Polônia/Alemanha, 2011). Direção: Michale Boganim. Roteiro: Michale Boganim. Elenco: Olga Kurylenko, Illya Iosivof, Andrzej Chyra, Vyacheslav Slanko. Duração: 108 minutos.
A imagem da usina de Chernobyl cuspindo uma fumaça negra é uma das imagens mais assustadores do cinema em 2011 e, durante cerca de 40-50 minutos, A Terra Ultrajada é um excepcional e tenso retrato da vida na plena e rica cidade de Pripyat antes do acidente no reator nuclear da usina em 1986. É uma pena, portanto que, ao abordar os eventos 10 anos depois do acidente a narrativa de Michale Boganim torne-se óbvia e comum apesar do pano de fundo devastador e do oportunismo temático após os recentes e similares eventos na usina nuclear de Fukushima.
Nesse sentido, o roteiro apresenta três linhas narrativas: Anya (Kurylenko, a Bondgirl de Quantum of Solace) está prestes a se casar com Piotr; Alexei (Chyra) é um cientista que acabou de plantar uma árvore com o seu filho Valery; e Nikolaj (Slanko), um caçador isolado habitando próximo às florestas da cidade. Com extrema felicidade, a diretora apresenta paulatinamente os primeiros passos da tragédia: as folhas avermelhadas nas árvores, a presença do exército, os peixes mortos nos rios e a chuva negra radioativa. Tudo isto, em meio a acontecimentos ordinários e corriqueiros, e que os habitantes confundiam com fogo na floresta ou mesmo uma guerra contra os americanos (a Guerra Fria era um sentimento real na época).
Traduzindo-se como uma espécie de Traffic versão tragédia de Chernobyl, o deslocamento do roteiro no tempo extraí a sua força, pois as consequências do desastre eram óbvias, e por mais interessantes que os personagens sejam, eles são eclipsados por algo muito maior e imponente do que eles. Eventualmente, determinados aspectos são irônicos e de uma felicidade temática irresistível, e ver Pripyat transformar-se em atração turística é de um sadismo gigantesco. Além disso, a diretora investe em simples e eficientes rimas: Alexei, em momentos distintos, é chamado de louco por razões completamente diversas; Anya novamente é passageira em uma moto e a gaiola com dois pássaros transmite um ar de esperança e não de sofrimento, quando fora vista pela primeira vez.
A fotografia de Yorgos Arvanitis e Antoine Heberlé reproduz a beleza e opressão do frio invernal ucraniano, e a desolação de uma cidade fantasma praticamente deserta. Trazendo planos memoráveis como aqueles em que vemos a imponente usina no pano de fundo, A Terra Ultrajada apesar de irregular, é uma história cativante sobre uma tragédia que todos deveriam conhecer para evitar que os erros do passado repitam-se no futuro.
32) Para Poucos (Happy Few, França, 2010). Direção: Antony Cordier. Roteiro: Antony Cordier, Julie Peyr. Elenco: Marina Foïs, Élodie Bouchez, Roschdy Zem, Nicolas Duvauchelle. Duração: 103 minutos.
Um único aspecto me incomodou neste soberbo exemplar do cinema francês sobre sexualidade, intimidade e relacionamentos: a maneira afobada com que Rachel, Franck, Teri e Vincent desenvolvem um quadrilátero amoroso consensual, ou uma espécie de swing. Logo, desde Vincent descaradamente insinuar-se a Rachel em uma reunião de trabalho, ou Franck seduzir Teri com alguns toques e escrever determinada dedicatória em um livro, a como aqueles dois casais resolvem abraçar um estilo de vida sem regras, o roteiro de Antony Cordier e Julie Peyr parece ansioso demais para derrubar o primeiro ato.
Feita essa resslva, Para Poucos deixou-me de queixo caído. A ousadia e imprevisibilidade dos protagonistas juntamente com a sincera evolução dessa aventura erótica permitiu estabelecer uma conexão com aquelas pessoas que, mais do que superar tabus, consegue tornar-se natural aos olhos do espectador. Obviamente, a princípio, isso parece liberdade sexual exagerada, mas que aos poucos, o roteiro transforma em uma necessidade para a felicidade de dois casais. Algo que os próprios personagens expõem em narrações voice over pontuais e importantes, e no questionamento do que é realmente amor.
Claro que, naturalmente, a tradição e a expectativa de um amor monogâmico começam a penetrar nas veias e afetar o que antes natural e espontâneo. Consequentemente, a sugestão de Franck para que Rachel compre um moletom nasce da comparação inconsciente do homem, buscando conferir a sua esposa alguns dos atributos que o atraem em Teri. Por sua vez, Rachel preocupa-se com o suéter usado por Teri ou as carícias que Franck faz no seu pé, como se aqueles, mais do que o sexo, fossem essenciais e íntimos apenas ao casal. Enfim, Vincent parece inconformado que sua esposa tenha um relacionamento mais afetivo com Franck, abraçando isto com uma violência contida que parece prestes a explodir.
Marina Foïs, Élodie Bouchez, Roschdy Zem e Nicolas Duvauchelle desenvolvem personagens geniais que, longe de amoldarem-se em convenções, nascem como adultos cientes dos riscos e dos prazeres das decisões tomadas e aventuras experimentadas. Enquanto Marina Foïs, uma mulher na meia idade, vê com rigor sexual aquele envolvimento, o olhar de Élodie Bouchez parece decantar um charme inocente e infantil, como se estivesse realizando um sonho de infância; por sua vez, observe como Nicolas Duvauchelle sempre se inferioriza com a segurança de Roschdy Zem, algo que é especialmente observado pelas habilidades na massagem deste.
Transformando a farinha branca, ou seria fermento, no equivalente à manteiga de O Último Tango em Paris, o símbolo da plena e irrestrita liberdade sexual, Para Poucos é uma viagem ousada, erótica e irrepreensível. E se tem algo que os franceses sabem é contar histórias como esta.
31) Las Acácias (Idem, Argentina/Espanha, 2011). Direção: Pablo Giorgelli. Roteiro: Pablo Giorgelli, Salvador Roselli. Elenco: German de Silva, Hebe Duarte, Nayra Calle Mamani. Duração: 85 minutos.
Em Las Acácias, o diretor Pablo Giorgelli apresenta o solitária ofício de um caminhoneiro que transporta regularmente madeira do Paraguai à Argentina. Seu nome é Rúben (Germán), um homem enrijecido, mas não insensível, pela ausência de contato humano com outros. Certo dia, ele da carona para Jacinta (Duarte) e sua adorável filha de 5 meses e, de forma natural e orgânica, desenvolve um laço afetivo com as duas, encontrando a faísca de humanidade que lhe restava para completá-lo.
Quase toda a ação deste belo estudo de personagem desenvolve-se no caminhão vermelho Scania de Rúben e que, além de instrumento de trabalho, também é a sua casa e uma extensão do seu corpo. Evidentemente que a decisão de ambientação do roteiro de Giorgelli e Salvador Roselli prejudica o ritmo interno do longa, e não é incomum que se passem longos minutos na estrada sem que um diálogo seja proferido ou uma ação realizada salvo a completa atenção ao caminho a sua frente.
Longe, porém, de ser uma fraqueza e algo negativo, essa decisão confere um peso maior às poucas palavras de Rúben e transforma o silêncio em uma característica da personalidade desse homem rústico e que se isolou da amabilidade do convívio com a humanidade. Interpretado com a dureza necessária por Germán sem que, novamente o friso, o torne alguém insensível e grosseiro, Rúben parece gritar por um contato mais profundo, apesar de desonhecer esse sentimento e essa necessidade. Balanceando os caracteres de Rúben, Jacinta é uma mulher doce, simples e discreta (e observe como o roteiro não caí na armadilha de obrigá-la a mencionar acerca das fotos que encontrou no porta-luvas), e Anahí, a sua filha, alguém capaz de desarmar o coração mais duro e amargurado com um sorriso ou um olhar.
Entretanto, apesar de descrever precisamente o cotidiano daquele homem e o vazio de sua vida, e desenvolver uma viagem realista e natural, culminando na triste ironia de uma calorosa recepção familiar, Las Acácias não foi capaz de me emocionar, apesar de encantar com a bochechuda Anahí e com a delicadeza de sua narrativa.
Mais um bom exemplar do cinema argentino que não precisa de Ricardo Darín para ser acima da média.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.