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Guerra Civil

3.5/5

Civil War

2024

109 minutos

3.5/5

Diretor: Alex Garland

Muitos mal interpretaram o anúncio de Alex Garland, diretor e roteirista de algumas das melhores ficções científicas contemporâneas (Ex_Machina Aniquilação), que veio a público esclarecer não estar se aposentando, mas priorizando a carreira de roteirista e não prevendo dirigir em um futuro próximo1. É uma notícia que traz conforto, pois, apesar de seu trabalho anterior ser o fraco Men: Faces do Medo, Garland é um autor de inteligência e sensibilidade raras, com a caneta na mão ou então atrás das câmeras, o que pode ser percebido no aguardado Guerra Civil, uma superprodução para os padrões da A24.

A distopia ambienta-se num futuro próximo e hipotético, em que a civilização norte-americana degenerou-se na barbárie da polarização política, que pôs os cidadãos uns contra os outros em uma guerra brutal e sangrenta. Não sabemos praticamente nada sobre o contexto político e, para mim, é a melhor decisão. Além de universalizar uma história e fazê-la alcançar o mundo e não somente um país dividido entre Democratas e Republicanos (aparentemente aliados via estados significativamente representativos, a Califórnia e o Texas), ao descaracterizar, até imageticamente, a figura do presidente (interpretado por Nick Offerman), Alex Garland cria um conto de alerta mais palatável e que apela a gregos e troianos. Dá para perceber o posicionamento político narrativo sem que este seja exposto e corra o risco de afastar junto quem deve aproximar.

Isso é articulado a partir dos jornalistas de campo que arriscam a própria vida para um pronunciamento ou uma fotografia que será transportada aos livros de história. Lee Smith (Kirsten Dunst) e Joel (Wagner Moura) compõem a equipe do Reuters no campo. Ela, fotógrafa; ele, redator. Durante a cobertura de um protesto, Lee salva a vida da fotógrafa iniciante Jessie (Cailee Spaeny), que não coincidentemente revela fã de seu trabalho. De repente, Jessie está de carona com Lee e Joel rumo a Washington, a capital, para obter uma entrevista exclusiva do presidente a dias de ser deposto pelas Forças Ocidentais. Acompanhando-os, o experiente Sammy (Stephen McKinley Henderson, um character actor que merece bem mais reconhecimento do que recebe).

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A estrutura de Guerra Civil é a de um road movie, cortando os Estados Unidos de Nova York até Washington e expondo as feridas purulentas, consequências da polarização e do ódio generalizado. Por entre estradas engarrafadas com automóveis abandonados e destruídos, a equipe enfrenta situações reveladoras do caos humano e econômico (por exemplo, o dólar perdeu o valor de mercado em face ao dólar canadense) e também da personalidade e profissionalismo dos personagens centrais (e do ofício de modo geral). Lee se voluntaria para fotografia um jovem não muito mais velho do que Jessie ao lado de homens espancados, ensanguentados e pendurados por correntes, expondo o nível de isenção que deve ter. Já Joel transformou o vício em adrenalina em uma maneira de lidar com a desumanidade ao seu redor. A jovialidade de Wagner Moura, ilustrada no flerte com uma mulher bem mais nova, e, sobretudo, ao enxergar disparos à distância e revelar o desejo de ir até lá, não muito diferente de um adolescente que quer passear na montanha russa, é contraposta à exaustão física e espiritual de Lee.

Preciso até iniciar um parágrafo para elogiar Kirsten Dunst, após o trabalho soberbo de Ataque dos Cães. A fisionomia dela já é indicativo do custo da profissão: o cansaço manifestado na postura retraída e nos ombros curvados. A isto, o semblante pálido e circunspecto, que aprendeu a não reagir e a permanecer indiferente à crueldade a seu redor (embora, talvez, quisesse apenas sorrir e experimentar um vestido novo). Ela é a força narrativa, pois permanece inabalável na crença de que o trabalho desempenhado é essencial para a sociedade julgar os eventos testemunhados por uma câmera que lhe drenou toda a vida.

A propósito, é intrigante como, em inglês, o verbo to shoot é mutuamente associado à arma e à fotografia, ao disparo de um fuzil e ao clique de uma câmera. É como se o ato de apontar a câmera a um objeto e dispará-la não fosse tão distinto do que o do sujeito que, de fato, dispara e executa um adversário. Enquanto o projétil pode até tirar a vida, o olhar pode conferir vida eterna. O olhar decota da realidade um evento que chamou o interesse do fotógrafo (daí porque sua atividade é política), eternizando-o na memória coletiva. Essa associação não pode ser ignorada, assim como também não a encenação de Alex Garland. De modo sutil, o diretor revela a presença de um franco-atirador no topo de uma edificação de um bairro aparentemente pacato ou a vala comum onde um miliciano interpretado pelo aterrorizante Jesse Plemons deposita dúzias de corpos.

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Mas a decisão da direção que mais me impactou é aquela que desnatura o cinema ou, melhor, o disseca por aquilo que é: uma ilusão criada por 24 fotografias por segundo. Ao substituir, em momentos capitais, a ilusão de um movimento cinematográfico por fotografias tiradas em tempo real, Alex utiliza o estilo para celebrar a profissão de Lee e também honrá-la. Também curti a trilha sonora composta por Ben Salisbury e Geoff Barrow, que promove uma alienação dos sentidos, talvez da mesma forma que aqueles que se matam nos campos de guerra mundo afora são alienados por figuras de poder a odiar os iguais. A composição desconcerta a calmaria e prenuncia o pior, enquanto, de jeito irônico, comenta a violência a partir de escolhas musicais, digamos, curiosas. E é a mesma trilha sonora que substitui o grito gutural de Wagner Moura por uma espécie de vácuo revelador da dor naquele momento.

Mas se não tombei de amores por Guerra Civil talvez a razão esteja na personagem de Cailee Spainey (de Priscilla). Não desgosto da atuação da atriz, mas sim da trajetória e previsibilidade de Jessie. A história da aprendiz que aprende com a mestre botando a mão na massa não é nova, e o fato de Sammy associá-la a Lee no início de carreira é o alerta para a crise existencial que é provocada no clímax. (Devo adverti-los de spoilers à frente, muito significativos, inclusive! Prossiga por sua conta e risco)

Os spoilers estão depois da imagem e do convite para se inscreverem na newsletter. Só gostaria de concluir afirmando que Guerra Civil é um conto de alerta de uma realidade que não queremos viver, mas que parece a cada dia mais próxima.

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Lee sacrificou a própria vida para salvar sua versão no início da carreira, no momento em que ainda havia alguma ingenuidade e que a vida não parecia ter sido drenada pela lente da câmera. É um sacrifício escancarado no roteiro, quando Jessie, após hesitar e não tirar uma foto, afirma “Não vou cometer esse erro de novo”. Ali, associado ao fato de que Jessie tirava com frequência fotos de Lee em trabalho, era possível antecipar que seria ela a fotógrafa da morte da ídolo. Só que, enquanto Lee respeitou a memória de Sammy e apagou a foto dele morto da memória da câmera, Jessie, talvez para honrar a sua memória ou para revelar de uma forma brutal a indiferença objetiva da câmera, a manteve.

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