De Ilusão também se Vive (Miracle on 34th Street, Estados Unidos, 1947). Direção: George Seaton. Roteiro: George Seaton, Valetine Davies. Elenco: Edmund Gwenn, Maureen O’Hara, John Payne, Gene Lockhart, Natalie Wood, Porter Hall, William Frawley, Jerome Cowan. Duração: 96 minutos.
Como alguém poderia provar objetivamente que Papai Noel existe e está sentado no banco dos réus da corte suprema de Nova York e, acima disso, encontrar o respaldo dessa afirmação na opinião de uma grande instituição pública norte-americana? Esta é a causa do advogado Fred Gailey, provar que o simpático e doce Kris Kringle é quem ele afirma veementemente ser, o autêntico bom velhinho, e não um iludido idoso acometido por transtorno de personalidade. Parece uma missão difícil, pautada no subjetivismo, mas que ganha contornos de alcance midiático, com enorme impacto na indústria de brinquedos, sobretudo, e na imagem que as crianças têm do Natal. Logo, o título em português, De Ilusão também se Vive, é bastante apropriado ao remeter às inúmeras criações e fantasias de nossa mente desenvolvidas não com fins alienatórios, mas para conferir uma aura mágica e a bondosa simplicidade a uma comemoração familiar anual.
Refilmado outras três vezes – especialmente na ótima versão de 1994, cujo título nacional é idêntico ao original, Milagre na Rua 34 -, este drama natalino de 1947 prova que esse período não precisa de cores, mas de sentimentos, para ser reconhecida como um período mágico, apesar do capitalismo natalino, do consumeirismo desenfreado e da corrida às lojas de brinquedos massacrarem as melhores e puras intenções do Natal. No período compreendendo o desfile de Ação de Graças e a ceia natalina, conhecemos Kris Kringle (Gwenn), um homem que caminha pelas ruas de Nova York orientando um lojista acerca da ordem e posição das renas em uma vitrine ou discutindo com o embriagado Papai Noel do desfile sobre o seu comprometimento com esse ofício. Rapidamente alçado a protagonista do desfile natalino por Doris Walker (O’Hara), Kringle aceita o emprego de Papai Noel na concorrida esquina da sétima avenida e a rua 34, na gigantesca Macy’s.
Deturpando os conceitos do capitalismo predatório e ignorando as recomendações de Charlie (Frawley), Kringle não hesita em recomenda consumidores a outras lojas se estes não encontram os produtos desejados na Macy’s. E o que parecia um suicídio nos negócios, ganha contornos completamente distintos, apresentando o inusitado e inédito conceito da benevolência natalina da Macy’s (e que logo é copiado pelos seus concorrentes que estavam perdendo vendas). Assim, Kringle torna-se a figura mais importante do Natal, apesar da recusa de Doris em manter no quadro um funcionário aparentemente com problemas psiquiátricos. Particularmente, a descoberta da ficha de admissão de Kringle é um dos momentos mais inspirados do longa, onde ele afirma ser “tão velho quanto a sua língua e um pouco mais velho que os seus dentes”, e acrescentar no rol de parentes próximos as renas clássicas (dançarina, cometa, rodolfo, etc).
Apesar de conquistar o coração dos pais e crianças que frequentam a Macy’s, Kringle não consegue penetrar no coração da precoce e realista Susan (Natalie Wood aos 8 anos de idade), que terminantemente não acredita em Papai Noel, em função da criação dada por uma emocionalmente frustrada Doris. Sem desistir, Kringle seduz a pequena Susan com o mágico mundo da imaginação e, de maneira doce e tocante, revive no coração dela algo que nunca deveria ter morrido, o espírito da festividade e a alegria de acreditar em algo. Ao mesmo tempo, Kringle desenvolve uma amizade com Fred Gailey (Payne), que viria a ser seu companheiro de quarto, e é secretamente apaixonado por Doris e paternalmente próximo de Susan.
Abraçando o milenar ensinamento de que, mesmo pelos caminhos errados, podemos fazer o bem, o diretor e roteirista George Seaton sustenta-se nos malefícios do capitalismo e nos duvidosos caminhos judiciais para apresentar uma mensagem de esperança e bondade para pais e filhos. Portanto, embora saibamos que as ações da Macy’s são boas no limite de que importam em lucro e prestígio para a empresa, é inegável o bem feito àquelas crianças que receberão exatamente aquilo que sonharam no Natal. A própria estrutura natalina centrada na compra de presentes é sujeita a críticas mas, infelizmente, a mensagem dita por uma criançinha alemã acaba não sendo traduzida na versão original (ao ser questionada por Kringle, em alemão, o que ela desejaria ganhar de natal, ela responde: “nada, eu já ganhei o que eu pedi ao ser adotada”).
Por sua vez, a subtrama judicial causada pelas acusações do psicólogo da Macy’s Granville Sawyer (Hall), a respeito das tendências maníacas confirmadas no inofensivo ataque de bengala, expõe mazelas do sistema norte-americana cuja decisão a respeito da identidade de Kringle baliza-se não no bom senso, porém na necessidade de proteger algumas instituições que seriam prejudicadas do contrário (a indústria de doces e brinquedos, a Cruz Vermelha). Assumindo uma conotação imensamente política – a reeleição do juiz Harper (Lockhart) – misturaa à inocência infantil – o próprio filho do promotor ingenuamente depõe pro Kringle -, o trabalho de George Seaton não esconde o seu real objetivo: o de não desapontar as crianças de todas as idades, ganhando o coração com a simplicidade narrativa.
Contando com a excepcional atuação de Edmund Gween, que não obstante ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante daquele ano (apesar de no meu entendimento, ser ele o protagonista), apenas desgosto do psicólogo vivido por Porter Hall. Constantemente mexendo e puxando a sobrancelha como muleta de interpretação nos momentos de maior nervosismo, o psicólogo acaba personificando a faceta comum dos vilões do cinema naquele momento histórico, impedindo a compreensão do que levaram aquele sujeito a agir com tamanha amargura. Por sua vez, Maureen O’Hara e John Payne ilustram bem o porquê acreditam na identidade de Kringle, enquanto Natalie Wood brilha e encanta como a pequenina Susan.
De Ilusão também se Vive é um pequeno e adorável filme de natal, contando com uma narrativa inventiva e original e, geralmente, boas atuações. Uma preciosidade que com mais de 70 anos de idade continua a emocionar crianças e adultos.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.