Simplesmente Amor (Love Actually, Inglaterra/Estados Unidos, 2003). Direção: Richard Curtis. Roteiro: Richard Curtis. Elenco: Bill Nighy, Colin Firth, Liam Neeson, Emma Thompson, Martin Freeman, Joanna Page, Chiwetel Ejiofor, Andrew Lincoln, Keira Knightley, Hugh Grant, Martine McCutcheon, Laura Linney, Rodrigo Santoro, Alan Rickman, Billy Bob Thornton, Rowan Atkinson, Kris Marshall. Duração: 138 minutos.
O que define o ser humano não é a inteligência ou o raciocínio, nem tampouco a comunicação e organização, e certamente não envolve função cognitiva desenvolvida e aperfeiçoada ao longo de milhões de anos de evolução. Parece clichê, mas o que define a nossa espécie é a capacidade que temos de amar, o reconhecimento da existência de um sentimento que nos move com força e é etéreo, permanente e pervasivo como o essencial ar que respiramos. O amor não se envergonha de versos e declarações cafonas, delineia-se sobre estes e traça a imprescindibilidade de outrem nas nossas vidas. Enfim, “o amor está em todo lugar”, afirma a narração de Hugh Grant durante os reencontros no saguão do aeroporto de Heathrow e está universalidade alça Simplesmente Amor a dos mais belos retratos do cinema sobre o tema, o casamento da essência e individualidade humanas com as festas natalinas – e vejam que ironia, dos supostamente frios e pragmáticos corações londrinos.
Assumindo o, geralmente, irregular formato de antologia, Simplesmente Amor é impressionante e eficiente desde a montagem inicial a qual nos apresenta economicamente as duas dezenas de personagens. Adentrar e resumir cada um dos relacionamentos desperdiçaria valiosas palavras e, embora alguns precedam outros, é indiscutível o charme e a pureza que cada um evoca. Assim, as linhas narrativas envolvendo Hugh Grant, Liam Neeson, Colin Firth, Emma Thompson e Alan Rickman dispõem de tempo para desenvolvimento mais apropriado do relacionamento de seus personagens; por sua vez, Martin Freeman, Laura Linney, Keira Knightley e Kris Marshall (apenas para citar os nomes mais conhecidos em cada história) encantam com a simplicidade e a destreza que a breve história de amor de cada um é apresentada. Finalmente, Bill Nighy é um monstro diverso na narrativa, conjurando formas de amor distintos e inevitavelmente permeando as demais narrativas com o seu tema natalino sarcástico e tocante.
É fácil apaixonar-se e embarcar no relacionamento de decentes e bons personagems, esperançosos em ter o seu amor retribuído, nem que esta venha de forma efêmera e fugidia. Veja a velocidade que o irreverente e desbocado Billy Mack (Nighy), um astro de rock decadente sonhando em emplacar um hit natalino para ressurgir no mercado da música, conquista o espectador na regravação de um dos seus clássicos no estúdio e o seu relacionamento com o seu agente. Mostrando-se deliciosamente divertido na honestidade de uma entrevista no rádio ou na sarcástica crítica às drogas (“Não comprem drogas. Se você for um astro de rock eles dão de graça”), Bill Nighy apresenta um dos melhores arcos dramáticos do longa, pois apesar de se manter fiel ao ideal roqueiro, onde é obrigatório o jeito excêntrico ou tocar guitarra pelado, ele sutilmente afasta o fantasma do amor próprio em prol do reconhecimento e generosidade.
Muito do sucesso de Simplesmente Amor vem do excelente roteiro de Richard Curtis, que também dirige, sobretudo no refinamento de diálogos memoráveis, sarcásticos e românticos, que traduzem perfeitamente o estado de espírito daqueles personagens. Dessa forma, o relacionamento de Jamie (Firth) e a portuguesa Aurelia (Lúcia Moniz) é belíssimo, e mesmo que eles falem línguas diferentes e não distinguam os elogios das brincadeiras, existe uma sintonia comovente especialmente na despedida no final da tarde: “é a parte mais feliz do meu dia, levá-la”, ele diz; “a parte mais triste é deixá-lo”, ela responde. Este antagonismo exclusivamente interlocutório, afinal há a confluência de idéias, resulta em divertidos momentos, como na busca das páginas de um livro no lago frio. Igualmente, as conversas de Daniel (Neeson) e seu enteado Sam (Thomas Brodie-Sangster) a respeito da agonia de estar apaixonado ou a inesquecível declaração de amor nos cartões ao som de “Noite Feliz” acertam precisamente no coração e emocionam pela naturalidade dos sentimentos que encerram.
Richard Curtis, eventualmente, exagera um pouco na crítica política, sobretudo no rompimento da relação especial entre o Reino Unido e os Estados Unidos – Hugh Grant inspira-se no primeiro ministro Tony Blair, enquanto Billy Bob Thornton apresenta os piores vícios de George W. Bush. Seu roteiro infelizmente é um pouco expositivo, e soa estranho quando Karen (Thompson, discreta e excelente) telefona para Daniel, ironicamente afirmando “eu não ligo que a sua esposa tenha morrido”, somente introduzindo um elemento que imagens apresentariam no tocante velório. Mas esses pequenos pecados não arranham a inspirada participação de Rowan Atkinson, o Mr. Bean, como um vendedor de uma joalheria fascinado por embalagens, e a beleza capturada em uma gravação VHS, o último registro de um homem apaixonado da mulher que secretamente ama.
Apresentando a excelente composição de Craig Armstrong e a trilha sonora incidental inspirada, o amor revela-se melódico, e a música “All you need is love”, cantada por músicos escondidos em uma cerimônia de casamento, a despedida de um grande amor no velório da esposa de Daniel e a balada de Joni Mitchell em um momento de singular fragilidade emocional de Karen traduzem na harmonia sonora palavras que dificilmente encontrariam vazão de maneira mais poética e lírica. Mesmo as escrachadas intromissões das músicas de Billy Mack satisfazem, embora funcionem exclusivamente como divertimentos passageiros.
Dirigido por segurança pelo estreante Richard Curtis, a atenção a composição de quadros e à direção de arte não escapam do meticuloso olhar do diretor. Assim, enquanto o apartamento luxuoso de Daniel surge cinza e desprovido de vida, e sejam ele e Sam que dão as cores daquele ambiente, o de Sarah (Linney) tem o toque infantil da garota que eternamente espera a chegada do príncipe encantado. Por sua vez, sabiamente posicionando seus personagens no canto inferior esquerdo, o diretor elabora uma interessante rima visual nos momentos de maior vulnerabilidade emocional – Liam Neeson, Emma Thompson e Colin Firth em momentos capitais inferiorizam-se ao som de alguma música e/ou da descoberta de alguma traição. Finalmente, o figurino desempenha uma importante determinante, e o casaco de vermelho vivo de Aurélia contrapõe a frieza e a insensibilidade de Jamie.
Remetendo novamente ao saguão do principal aeroporto de Londres e revisitando naquele lugar as histórias de amor que descobrimos e as aventuras e loucuras que aqueles personagens submeteram-se para encontrar o amor, Simplesmente Amor é por muitos despachado pelo excessivo otimismo e final redondamente feliz. Eu jamais reclamaria disto… coisas do amor.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Simplesmente Amor”
Acho esse filme uma delícia de assistir, é assim que se faz comédias românticas.
O filme tem ótimos personagens, é divertido, emociona e tem o final feliz típico do gênero.