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Um Anjo Caiu do Céu

Um Anjo Caiu do Céu (The Bishop’s Wife, Estados Unidos, 1947). Direção: Henry Koster. Roteiro: Robert E. Sherwood e Leonardo Bercovici baseado no livro de Robert Nathan. Elenco: Cary Grant, David Niven, Loretta Young, Monty Woolley, James Gleason, Gladys Cooper, Elsa Lanchester, Sara Haden, Karolyn Grimes. Duração: 109 minutos.
O período das festas é uma época propícia para começarmos a acreditar em milagres, não aqueles que façam uma mesa de madeira flutuar no ar ou uma catedral erguer-se em um piscar de olhos, mas sim aqueles que passam desapercebidos debaixo de nossos narizes: um casal apaixonado redescobrir o sentimento enterrado pela preocupação e rotina diários, uma criança ser aceita por outras para uma brincadeira apesar de menor e fraca, um senhor escolado e culto esbarrar em indícios que fertilizem e agucem a sua inteligência e uma nova produção acadêmica ou outrem readquirir a fé na humanidade despretensiosamente em uma pista de patinação. Parece muita coisa – e É -, mas ignorados terminantemente pela maioria das pessoas, essas milagres apenas reafirmam a aspereza e intransigência do prático e determinístico ser humano, dureza penetrável sensivelmente pela magia e encanto natalinos, nem que isso seja temporariamente.

Como muitos outros, assim é Henry Brougham (Niven), um bispo episcopal que suplantou o calor e a afeição do contato familiar e a fé no seu ministério pela estressante arrecadação dos fundos para construção de uma nova e imponente catedral. Cedendo aos desejos egoísticos de uma viúva (Cooper), a principal fonte de recursos para essa grande obra, Henry vê-se pedindo por direção e iluminação na alvorada de um novo Natal. Suas preces são atendidas pelo envio de Dudley (Grant), um anjo carismático e bondoso, admirado e adorado por todos, e cujas ações não são exatamente realizadas da maneira que Henry esperaria, levando-o a crer que Dudley deseja não o ajudar, mas usurpar sua posição de ministro, marido e pai.
Medo e desconfiança compreensíveis, afinal de contas estamos falando de Cary Grant, um dos galãs definitivos da constelação de Hollywood, retratado desde os minutos iniciais de Um Anjo Caiu do Céu como um anjo ligeiramente travesso. Resgatando um carrinho de bebê ou ajudando um cego a atravessar a rua, o que não previne as freadas bruscas e colisões iminentes de motoristas apressados, Dudley não hesita em dissimular sua identidade para descobrir com o Professor (Woolley, ótimo), a identidade da bela mulher cobiçando o chapéu mais bonito em uma cara vitrine. Ela é Julia (Young), esposa de Henry, e pivô de uma injusta competição por seu amor e dedicação, pois enquanto Dudley tem tempo e conhecimento para oferecer descompromissadamente aquilo que Júlia ansiava, o bispo está preso aos afazeres e pressões da nova catedral, inclusive literalmente, como na engraçada cena em que David Niven não consegue desvencilhar-se de uma cadeira na casa da viúva Hamilton. Além disso, como competir com o charmoso Cary Grant?
Rapidamente conquistando todos ao seu redor, Dudley dá uma ajudinha para que a pequenina Debby (Grimes) participe de uma brincadeira, reavivando a crença no Papai Noel e no Natal no coração da criança. Similarmente, ele dá um empurrãozinho (e uma garrafa de conhaque mágica) para que o Professor aprofunde-se em pesquisas históricas surpreendentes ou ajuda Sylvester (Gleason), um taxista, a patinar. Por sua vez, ele surge quase como uma pedra de tropeço para o ciumento Henry, ameaçado pelo tempo mais frequente que Dudley e Julia passam juntos, e cujas divertidas disputas de gentileza ou as coincidências que impedem de revelar a identidade do anjo sugerem um adversário insuperável.
Habitualmente apresentado com os dois braços atrás do corpo, em uma postura pensativa e defensiva, a composição de David Niven não deixa dúvidas da natureza caridosa e gentil do bispo, soterrada debaixo da perda da fé após anos de serviço paroquial, o que permite uma sutil provocação de Dudley sobre a incredulidade na existência de anjos. Submisso à obrigação material de construir uma imponente catedral, cujo fardo é registrado no tenebroso e nada divino quadro no alto e no centro do escritório, Henry demonstra pontualmente um enorme carinho e arrependimento do amor displicente por sua esposa ou da impossibilidade de participar de um coral em uma paróquia mais humilde. Essa postura, aliás, é fundamental para que aceitemos a redenção do personagem, nem que eventualmente sua rabugice torne-se um problema, embora os pontuais e oportunos alívios cômicos.
Do outro lado, Cary Grant desfila a sua simpatia e carisma, enquanto Loreta Young é doce o bastante para conseguir conquistar ela mesma um anjo. Aliás, Um Anjo Caiu do Céu apresenta a pertinente subtrama acerca das consequências de Dudley realmente apaixonar-se por Julia, e observe como a atuação de Grant permite a percepção de duas interpretações completamente distintas, no entanto, perfeitamente satisfatórias. Se realmente Dudley estivesse frustrado por não poder permanecer na Terra e conquistar Julia ou se apenas fosse mais um comportamento dissimulado e imprevisível dele, a conclusão seria a mesma, o que abre espaço para o espectador julgar a sua maneira (algo sempre bem-vindo no cinema).

Mas, o roteiro de Robert E. Sherwood e Leonardo Bercovici derrapa no presente a Julia, denunciando a mensagem desnecessariamente capitalista, inclusive veementemente combatida: a construção da catedral exige mais esforços e recursos do que ajudar os pobres e os necessitados. Por sua vez, a direção de Henry Koster, em um ano que viu a indicação ao Oscar de outro filme natalino, De Ilusão também se Vive, faz com que o afastamento de um personagem do círculo principal seja seguida por uma diminuição da iluminação e um figurino menos alegre e sombrio.
Investindo em uma ótima direção de arte, especialmente os interiores da residência de Henry que refletem a sobriedade de seu proprietário, desde as estantes cheias de livros, ao ar clássico e às janelas, desenhadas com símbolos cristãos, o quadro do projeto da catedral ultimamente atinge a iluminação necessária para afastar a aura assustadora e assumir uma feição de dádiva e presente. Um milagre oportuno, invisível aos olhos menos atentos, e tão comum nesta época do ano.

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