Um Homem de Família (The Family Man, 2000, Estados Unidos). Direção: Brett Ratner. Roteiro: David Diamond, David Weissman. Elenco: Nicolas Cage, Téa Leoni, Don Cheadle, Jeremy Piven, Saul Rubinek, Lisa Thornhill. Duração: 120 minutos.
Os mais novos podem não se lembrar, mas antes de aceitar estrelar qualquer nova porcaria sem sequer ler o roteiro (e antes também de usar as mais inusitadas perucas), Nicolas Cage era um dos atores mais interessantes do cenário norte-americano, atuando em dramas formidáveis (Despedida em Las Vegas e Adaptação), ótimos filmes de ação (A Rocha e A Outra Face) e pequenas pedras preciosas como este Um Homem de Família. Essencialmente uma homenagem ao principal clássico das festas de natal, A Felicidade não se Compra, de Frank Capra, a narrativa nasce na tradicional, e porque não clichê, pergunta “e se?” para desenvolvar sua alegoria natalina de despreendimento e redenção, valores recorrentemente associado a este período do ano.
Em 1987, Jack Campbell (Cage) despediu-se do seu grande amor Kate Reynolds (Leoni) para um curso de 1 ano em Londres, com a promessa de “vai ser como eu nunca tivesse ido”, apesar do choro da moça contrariar as melhores expectativas do rapaz. 13 anos depois, ele acorda na sua cobertura de um luxuoso prédio nova iorquino, com uma ferrari estacionada na garagem, e à beira de assinar um contrato de fusão de mais de 100 bilhões de dólares. Misógino e narcisista, ele afirma “ter tudo o que quer”, embora nem todo o seu dinheiro pudesse mudar a solitária véspera de natal na visão das desertas ruas da grande maçã, e a neve que caí docemente no seu rosto, introduzindo um vazio que Jack jamais imaginava possuir. Subitamente, um anjo (Don Cheadle), peça comum no jogo natalino, oferece uma amostra do que sua vida seria se tivesse feito uma escolha diferente naquele fatídico dia no aeroporto.
No dia seguinte, manhã de Natal, Jack acorda na mesma cama com sua esposa Kate, seus dois filhos – a gracinha Annie (Makenzie Vega) e Josh -, e um cachorro latindo e babando. Sua casa agora é uma residência suburbana no meio de Nova Jérsei; seu carro, uma SUV que as vezes demora muito para dar ignição; e seu emprego, longe de Wall Street, é em uma revendedora de pneus, com o seu sogro Big Ed (Harve Presnell). Esta seria a sua vida se não tivesse embarcado para Londres, e Nicolas Cage ilustra muito bem o desnorteamento de Jack, no bom estilo overacting, mas que casa muito bem com a proposta (ou quem não se desesperaria na mesma situação?). Sem ninguém para acreditar na louca história, exceto Annie, que acha que ele é um alienígena que substituiu o corpo do pai, as palavras de Kate “você perdeu o Natal”, funcionam de forma distinta, apontando para tudo o que Jack abriu mão em prol da ganância e do dinheiro.
Dirigido por Brett Ratner, costumeiramente esnobado e antipatizado por razões que não compreendo – pessoalmente, gosto de muitos dos seus filmes, X-Men – O Confronto Final, Dragão Vermelho, A Hora do Rush -, sua direção é sutil e dá liberdade aos dois protagonistas de brilhar indistintamente. Recorrendo a travellings discretos, como o durante o champagne no aniversário do casal, ou o que apresenta o ex-escritório de Jack, agora de Alan (Rubinek), completamente repaginado, Ratner cede espaço para homenagear Frank Capra na já mencionada rima da neve que caí no rosto de Jack em dois momentos diametralmente distintos. Além disso, observe o cuidado do diretor na composição da fita VHS, e o olhar frustrado de Evelyn (Thornhill), que gostaria de não estar ouvindo o homem que ama cantando uma música romântica para outra.
Roteirizado por David Weissman e David Diamond, a narrativa tem o seu quê de sentimentalismo e pieguismo porém, se até Ebenezer Scrooge abraçou despudoradamente o seu eu-redescoberto, porque seria diferente com Jack Campbell? Apresentando pontualmente elementos que definem o caráter de Jack, como a vaidade na compra de um terno, e desconstruindo a dinâmica do casal nos pequenos momentos, a empolgação contagiante de Kate na abertura do presente de aniversário do casal ou a contenda por um pedacinho de bolo, os roteiristas fazem um ótimo trabalho em ilustrar as surpresas que a vida apresenta e como ela consegue equilibrar os sacrifícios que fazemos com as recompensas que passam desapercebidas pelos nossos olhos.
E chegamos a Nicolas Cage e Téa Leoni. Apresentando uma invejável química e um carinho natural do carisma dos dois atores, não é difícil acreditar que Jack conseguiria mudar com uma presença tão vibrante e espirituosa do seu lado como Kate. Da mesma maneira, é fácil perdoar as mancadas que o sujeito dá, porque o afeto e amor que ele sente por ela é imediatamente observado nas declarações inesperadas e no olhar de quem está a vendo pela primeira vez.
É uma pena, portanto, que o desfecho não me soe apropriado e surja com uma pequenina pontada de hipocrisia, mas insuficiente para desprezar esta belíssima história de romance e redenção com a cara do Natal.
Frank Capra aplaudiria, disso não tenho dúvidas.
(Este filme integra o especial de Natal do Cinema com Crítica, que durante todo o mês de dezembro escolheu os melhores filmes desta época do ano).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Um Homem de Família”
Ótimo Especial proposto por você aqui no Cinema com Crítica. Gosto muito desse filme, exceto pelo final, como você bem apontou aqui. Não gosto do Cage de hoje, mas você apontou muitíssimo bem, lá nos anos 1990 ele fazia coisas boas. Eu até acrescentaria sua personagem em "Coração Selvagem", do Lynch.