Pierre, desde o princípio, não é visto como um homem tridimensional. Apesar da afeição nutrida pela esposa, ele não hesita em trocar olhares com a comissária de bordo Nicole (Dorléac, que faleceu jovem vítima de um acidente de carro) ou devorá-la na troca de seus confortáveis calçados por saltos altos. A emocionalmente independente Nicole também fomenta o flerte; ela enxerga o prestígio social de Pierre, embora não deseje aproveitar-se desse. Ela contenta-se com a foto na primeira página dos jornais, uma discreta recordação. Eis, porém, que a vida apronta suas coincidências e Pierre e Nicole hospedam-se no mesmo hotel em Lisboa e se encontram casualmente no elevador. Brincando com um dos fetiches mais manifestos do sexo masculino – aeromoças -, François Truffaut harmoniza a intensa agenda de Pierre com a cansativa e inconstante vida de Nicole na série de encontros dos dois em Paris ou no campo, na cidade de Reims. Mas, por que Pierre traí?
Truffaut e o co-roteirista Jean-Louis Richard nunca deixam isso claro. Há, todavia, duas cenas que ajudam clarear a mente do espectador e ambas envolvem os esforços de transeuntes, respectivamente nas ruas de Reims e Paris, em táticas grosseiras para seduzir Nicole e Franca. Esta, no entanto, é quem confronta o galanteador fajuto, empurrando a enxergar o próprio reflexo no espelho e indagando se ele “acha que o amor fora feito apenas para ele”. Pierre traí porque pode. Ele tem o poder do dinheiro e da fama, traja roupas caras e elegantes e tem a insegurança inerente de um homem na meia-idade receoso da perda da masculinidade. Desprezível e egoísta, ele não ignorou a oportunidade que surgiu a sua frente ingenuamente ciente de que a prudência poderia manter o caso extraconjugal encoberto. A vida também quis assim – ele poderia ter perdido o voo -, testando (e reprovando) a sua fidelidade.
Por sua vez, a volatilidade de Nicole causa estranheza, pois ela quem movimenta as ações de Pierre em um primeiro momento anotando seu telefone de paris no verso de uma cartela de fósforos para, no terceiro ato, julgar imprudente as ações de Pierre. Longe de ser a tradicional femme fatale e sem exibir traços mais sedutores e envolventes afora à beleza, Nicole é um mistério. Embora a boa interpretação e a fragilidade de Françoise Dorléac permitissem compreender diferentemente, é muito difícil julgar que um homem da posição de Pierre se atrairia por alguém repreendida com certa frequência (o tom de voz alto no restaurante o incomoda, as cobranças e exigências em Reims também). Dessa maneira, depois de humilhada, como ela mesma afirmara, Nicole exibe contornos de mulher decidida e forte completamente distinta daquela imagem vista anteriormente. E Truffaut não tem cuidado de inseri-las paulatinamente para que a mudança na sua personalidade seja suave e fluida.
O que torna Franca a personagem mais interessante da narrativa. Esposa dedicada e fiel à noção abstrata de companheirismo, a descoberta da traição de Pierre (diga-se de passagem, fruto do desleixo improvável do marido) instiga uma instabilidade e bipolaridade desconhecidas na mulher – acentuadas nas ações extremadas que ela virá a tomar. Submissa ao marido – observe como, apesar de dirigir, é Pierre quem muda as marchas do carro -, seu revelador sorriso no final é o melhor momento do longa e no mundo perfeito, suficiente para dirimir a direção desmazelada de Truffaut.
Junto de seus colaboradores habituais, o diretor de fotografia Raoul Coutard, a montadora Claudine Bouché e o compositor Georges Delerue, François Truffaut mantém um trabalho mais econômico do que os seus outros filmes da nouvelle vague. Transformando a recepção do lançamento do último filme de André Gide (um antigo ator do cinema francês) em um pesadelo na insistência do uso da câmera subjetiva e a mise-en-scène que, invariavelmente, joga Nicole no esquecimento e sombras, Truffaut exalta muito bem o estado de espírito de Pierre no evento, justificando a tensão e nervosismo de Pierre. O diretor também é inteligente na construção da rima do acendimento e desligamento das luzes os quais acabam servindo de interruptores morais para as ações de Pierre.
Diante disso, é uma pena que o, costumeiramente sensível, Truffaut tenha criado personagens tão volúveis e rasos e, sobretudo, uma narrativa terrivelmente desinteressante e óbvia que não faz jus a sua carreira.
* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta, 1 de fevereiro, com A Noiva estava de Preto (1968).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.