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Um só Pecado

Um só Pecado (La Peau Douce, França, 1964). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Jean-Louis Richard. Elenco: Jean Desailly, Françoise Dorléac, Nelly Benedetti, Daniel Ceccaldi, Laurence Badie, Philippe Dumat, Paule Emanuele, Maurice Garrel, Sabine Haudepin, Dominique Lacarrière, Jean Lanier, Pierre Risch. Duração: 112 minutos.

Pierre Lachenay (Desailly) é um rico editor francês preso a uma vida burguesa agitada de compromissos e viagens. Logo o conhecemos atrasado para embarcar à Lisboa onde lançará um livro a respeito de Honoré de Balzac (o principal ídolo literário de Truffaut, como visto n’Os Incompreendidos). Casado há cerca de 15 anos com Franca (Benedetti) e pai da adorável Sabine (Haudepin), e rodeado pela presença de amigos, um arrisca ser multado para levá-lo a tempo para o aeroporto, outros estão de viagem marcada a Tóquio e pedem recomendações de hotel, Pierre não parece dispor de razões para ser infiel. Neste cenário, François Truffaut elabora um atípico estudo de personagem simultaneamente novelesco e previsível. É um filme menor do cineasta, desenvolvido de forma óbvia e exagerada, cuja conclusão é sustentada fragilmente nas manchetes dos jornais colecionados pelo diretor. Há pequenos detalhes recompensadores ao espectador atento, sutis incursões que mostram a economia nas composições de Truffaut, mas eles são insuficientes para suprir a carência emocional da história e, sobretudo, os personagens aborrecidos.

Pierre, desde o princípio, não é visto como um homem tridimensional. Apesar da afeição nutrida pela esposa, ele não hesita em trocar olhares com a comissária de bordo Nicole (Dorléac, que faleceu jovem vítima de um acidente de carro) ou devorá-la na troca de seus confortáveis calçados por saltos altos. A emocionalmente independente Nicole também fomenta o flerte; ela enxerga o prestígio social de Pierre, embora não deseje aproveitar-se desse. Ela contenta-se com a foto na primeira página dos jornais, uma discreta recordação. Eis, porém, que a vida apronta suas coincidências e Pierre e Nicole hospedam-se no mesmo hotel em Lisboa e se encontram casualmente no elevador. Brincando com um dos fetiches mais manifestos do sexo masculino – aeromoças -, François Truffaut harmoniza a intensa agenda de Pierre com a cansativa e inconstante vida de Nicole na série de encontros dos dois em Paris ou no campo, na cidade de Reims. Mas, por que Pierre traí?

Truffaut e o co-roteirista Jean-Louis Richard nunca deixam isso claro. Há, todavia, duas cenas que ajudam clarear a mente do espectador e ambas envolvem os esforços de transeuntes, respectivamente nas ruas de Reims e Paris, em táticas grosseiras para seduzir Nicole e Franca. Esta, no entanto, é quem confronta o galanteador fajuto, empurrando a enxergar o próprio reflexo no espelho e indagando se ele “acha que o amor fora feito apenas para ele”. Pierre traí porque pode. Ele tem o poder do dinheiro e da fama, traja roupas caras e elegantes e tem a insegurança inerente de um homem na meia-idade receoso da perda da masculinidade. Desprezível e egoísta, ele não ignorou a oportunidade que surgiu a sua frente ingenuamente ciente de que a prudência poderia manter o caso extraconjugal encoberto. A vida também quis assim – ele poderia ter perdido o voo -, testando (e reprovando) a sua fidelidade.

Por sua vez, a volatilidade de Nicole causa estranheza, pois ela quem movimenta as ações de Pierre em um primeiro momento anotando seu telefone de paris no verso de uma cartela de fósforos para, no terceiro ato, julgar imprudente as ações de Pierre. Longe de ser a tradicional femme fatale e sem exibir traços mais sedutores e envolventes afora à beleza, Nicole é um mistério. Embora a boa interpretação e a fragilidade de Françoise Dorléac permitissem compreender diferentemente, é muito difícil julgar que um homem da posição de Pierre se atrairia por alguém repreendida com certa frequência (o tom de voz alto no restaurante o incomoda, as cobranças e exigências em Reims também). Dessa maneira, depois de humilhada, como ela mesma afirmara, Nicole exibe contornos de mulher decidida e forte completamente distinta daquela imagem vista anteriormente. E Truffaut não tem cuidado de inseri-las paulatinamente para que a mudança na sua personalidade seja suave e fluida.

O que torna Franca a personagem mais interessante da narrativa. Esposa dedicada e fiel à noção abstrata de companheirismo, a descoberta da traição de Pierre (diga-se de passagem, fruto do desleixo improvável do marido) instiga uma instabilidade e bipolaridade desconhecidas na mulher – acentuadas nas ações extremadas que ela virá a tomar. Submissa ao marido – observe como, apesar de dirigir, é Pierre quem muda as marchas do carro -, seu revelador sorriso no final é o melhor momento do longa e no mundo perfeito, suficiente para dirimir a direção desmazelada de Truffaut.

Junto de seus colaboradores habituais, o diretor de fotografia Raoul Coutard, a montadora Claudine Bouché e o compositor Georges Delerue, François Truffaut mantém um trabalho mais econômico do que os seus outros filmes da nouvelle vague. Transformando a recepção do lançamento do último filme de André Gide (um antigo ator do cinema francês) em um pesadelo na insistência do uso da câmera subjetiva e a mise-en-scène que, invariavelmente, joga Nicole no esquecimento e sombras, Truffaut exalta muito bem o estado de espírito de Pierre no evento, justificando a tensão e nervosismo de Pierre. O diretor também é inteligente na construção da rima do acendimento e desligamento das luzes os quais acabam servindo de interruptores morais para as ações de Pierre.

Diante disso, é uma pena que o, costumeiramente sensível, Truffaut tenha criado personagens tão volúveis e rasos e, sobretudo, uma narrativa terrivelmente desinteressante e óbvia que não faz jus a sua carreira.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta, 1 de fevereiro, com A Noiva estava de Preto (1968).

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