As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, França, 1971). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault baseado no livro de Henri-Pierre Roché. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Kika Markham, Stacey Tendeter, Sylvia Marriot, Marie Mansart, Philippe Léotard, Irène Tunc e Mark Peterson. Duração: 138 minutos.
por Luiz Santiago
Uma definição qualitativa do trabalho de qualquer artista pode causar mal estar e desavenças entre seus fãs e admiradores. Ao dizer que As Duas Inglesas e o Amor (1971), filme de François Truffaut baseado no romance de Henri-Pierre Roché é o melhor filme do diretor, adentramos a essa categoria de desavenças e somamos a influência do subjetivo nessa questão. Uma coisa, no entanto, é unânime entre todos os espectadores da obra: a beleza estética e o trabalho do roteiro mediante os desencontros amorosos são mais que louváveis, e por si só, já garantiriam ao filme um grandioso valor.
O título original da película, tal qual o da obra literária, As Duas Inglesas e o Continente, é bem mais sugestivo quanto ao significado simbólico da obra. Nela, temos narrada a história de Claude (Jean-Pierre Léaud), que conhece Anne, uma jovem inglesa com quem pretende praticar o inglês, e a convite desta, vai ao País de Gales. Após seu encanto inicial pela bela Anne (Kika Markham), Claude passa a lidar com os sentimentos que surgem após conhecer a irmã mais nova, Muriel (Stacey Tendeter). Surgem então as sementes de um triângulo amoroso que atravessará anos e marcará para sempre a vida dos envolvidos.
Como “o continente”, Claude é a representação dos estereótipos culturais, experiências vividas, paixões e desejos. Como representantes de faces diferentes da “ilha”, Anne e Muriel possuem um valor quase sacral para Claude, pois que todas as atitudes das jovens atingem-no e o faz pensar, reagir ou tomar atitudes a respeito. É apenas na ilha (lugar de acesso “ritualístico”, dado apenas por voo ou navegação, uma espécie de pequeno cosmos) que Claude esboça sentimentos físicos e teóricos em relação ao amor. Sua ida ao País de Gales o despertou para um mundo até então conhecido unicamente pelo viés estereotipado do continente, incluindo a “ciência dos bordeis” e a “cartilha da vida boêmia”.
As diferenças culturais entre Claude e a família Brown são postas em segundo plano para dar lugar ao surgimento e desenvolvimento da paixão e do amor entre os três protagonistas. A aparente simetria com Jules e Jim (1962), outro grande filme de Truffaut, também adaptado de um livro de Henri-Pierre Roché, se desfaz quando percebemos que As Duas Inglesas não amortece os choques dolorosos e não é filmado de longe nem em espaço nem no tempo. Como o próprio diretor disse, trata-se de “um filme físico sobre o amor”, e nesse ponto, As Duas Inglesas marca um novo período na vida do cineasta, onde a amargura – a mesma amargura de Adèle H. (1975) e O Quarto Verde (1978) – ganha maior destaque, e a literatura, o amor desmedido e sofredor e um certo niilismo ideológico (mais passional que racional) tem lugar cativo e explorado.
No trabalho com os triângulos amorosos e o desenvolvimento da história, o diretor usou e abusou de uma técnica nuclear do cinema, a mesma que ele usara em Atirem no Pianista (1960), por uma brincadeira formal, e a mesma que ele usaria em A Noite Americana (1973) por conveniência metalinguística: a íris, aquela espécie de “olho da lente” que se fecha e abre sobre algum objeto em cena, afim de lhe dar destaque. O caso de As Duas Inglesas é ainda mais especial, porque o filme começa em 1899, na virada do século, e vemos o diretor trabalhar formalmente um recurso de montagem típico daquele momento do cinema. Outras experimentações narrativas como as sobreposições também dão indícios de uma volta à linguagem inicial da sétima arte. Esse amplo diálogo da montagem (que contou com dois editores) é justificado porque Truffaut remontou o filme 13 anos depois (e pouco antes de sua morte), o que resultou no acréscimo de meia hora, chegando à configuração final de 138 minutos. Ainda hoje existem as duas versões em circulação.
O apego de Truffaut para com esse filme era enorme. O badaladíssimo diretor de fotografia Néstor Almendros realizou um trabalho impressionante com a exploração do verde em suas mais diversas tonalidades e nuances, bem como do azul (com grande ajuda do também popular figurinista Gritt Magrini) e as cores opacas e mais escuras da região litorânea da Inglaterra, e da cidade de Paris. Em carta ao Almendros, Truffaut afirmou certa vez que este era o seu filme “mais belo visualmente”. E essa beleza nos chega através dos óculos escuros de Muriel, do por do sol defronte o mar, dos jardins quase impressionistas de Paris e das paisagens longínquas e românticas.
De certa forma, As Duas Inglesas é um filme duplo. Ao mesmo tempo que fala sobre o desapego, o afastamento, a renúncia do outro, é um filme que mostra o prazer do amor, o fulgor da paixão literária na passagem do século, a importância de um amor que não é nem escultura nem livro, nem pintura, nem cinema. As Duas Inglesas é um filme duro, direto e apaixonado sobre o comportamento dos enamorados frente a todas as suas paixões, e sobre os vieses da vida, que podem interromper a ligação dessas afinidades eletivas, deixando para trás apenas a memória escrita, fotografada, ou presa na mente daqueles que viveram para contar a história. Mais que um filme de amor, As Duas Inglesas é um filme sobre “o primeiro e verdadeiro amor” de toda humanidade.
Publicação gentilmente produzida por Luiz Santiago, autor e editor do Cinebulição, para o especial François Truffaut do Cinema com Crítica.
* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na sexta, 15 de fevereiro, com Uma Jovem tão Bela como Eu (1972).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “As Duas Inglesas e o Amor”
Ótimo texto! Um dos melhores especiais que tenho encontrado online, uma justíssima homenagem a este importante diretor, responsável por grandes obras-primas! Adorei
Acima de tudo, alguém como nós: crítico 🙂
Esse filme me encanta muitíssimo. Gosto realmente MUITO dele, é o meu Truffaut favorito.
Agradeço o convite do Márcio para esse Especial. Já o parabenizei pela iniciativa, e repito aqui: é maravilhoso o trabalho que você vem fazendo com esse especial, amigo. Filmografia incrível e convidados muito bons, com ótimas abordagens. Parabéns.
Abraço.