Após descobrir que a intrépida e liberal jornalista Skeeter Phelan estava escrevendo um livro detalhando o ponto de vista das empregadas domésticas a respeito do cotidiano das famílias brancas na racista cidade de Jackson, no estado do Mississípi, a esquentada e desbocada Minny Jackson não pensa duas vezes antes de esbaforir “O que a faz pensar que negros precisam de sua ajuda?”. Mantida a coerência existente nessa curta e poderosa frase, Histórias Cruzadas poderia ser um filme exemplar versando sobre preconceito e discriminação com inteligência e sensibilidade. Entretanto, não se passa sequer um minuto até que Minny abandone a postura certamente intolerante, mas plenamente justificável, para ignorar uma vida de sofrimentos e pesares e começar a falar a respeito de … culinária! Com esse tom ingênuo, tolo, superficial e simplificador, confundido por muitos como preconceituoso (e não os condeno por achá-lo), é que se sustenta o trabalho do diretor e roteirista Tate Taylor, a partir do livro escrito por Kathryn Stockett, para contar esta história indicada ao Oscar de Melhor Filme.
Comprovando que a Academia indicaria qualquer filme na ânsia de fugir do esteriótipo conservador e soar militante (basta observar bobagens recentes como Um Sonho Possível ou Minha Mãe e Meus Pais para comprovar a teoria), Histórias Cruzadas é um filme tão simplório e banal que se transforma em caricatural, e nem mesmo Skeeter (Stone) consegue ser diferente – e não se engane, ela é quem é a verdadeira protagonista e não alguma das empregadas domésticas. Catalisadora de certas mudanças de comportamentos ocorridas em Jackson, Skeeter é a típica jovem idealista egressa da faculdade e impaciente para mudar o mundo ao seu redor, esbarrando na confortável inércia de uma população acostumada a tratar “seus negros” como objetos e não genuínas pessoas com sentimentos. Sendo a única a agradecer a Aibileen (Davis) por servir-lhe chá, Skeeter demonstra uma mentalidade moderna manifestamente proveniente dos estudos universitários. Logo, não demora para que suas “amigas” a rotulem de liberal e insistam para que ela case, e a dificuldade em engatar um relacionamento provoca questionamentos enfáticos e ridículos de sua mãe Charlotte (Janney) a respeito de sua sexualidade (e Tate Taylor mostrou-se o menos competente para lidar com discriminação!).
Mas, Histórias Cruzadas satisfaz-se na abordagem rasa de seus personagens, não se questionando o porquê de suas ações e sequer arranhando suas personalidades. Mais preocupado na transcrição de uma narrativa que aponte os dedos e diga: “Olhem a monstruosidade que nossos antepassados fizeram e como hoje somos completamente diferentes!”, Tate Taylor ao menos contextualiza de forma razoável a vida de Aibileen e Minny (Spencer). A primeira, além dos afazeres domésticos, é a babá de sua décima sétima criança na residência de Elizabeth (O’Reilly), enquanto a outra, “a melhor cozinheira da cidade”, tolera a antipática e cruel Hilly (Howard). Surpreendidas com a notícia de que terão seu banheiro particular na área externa, disfarçada sob a alegação de novo direito conquistado, quando na verdade provém do “problema racial” asseverado por Hilly, elas aceitam auxiliar Skeeter a escrever seu livro, acrescentando histórias verídicas vividas por cada uma mesmo que as leis de segregação as proibissem.
Sem conseguir criar o mínimo conflito na produção do livro que, aparentemente escreve-se sozinho, o roteiro utiliza o covarde assassinato de um jovem negro em frente a seus filhos, patrocinado por membros da Ku Klux Klan, a violenta organização supremacista branca, como uma pífia desculpa para vergonhosamente criar uma urgência em determinada cena. No entanto, não há insegurança e ameaça, e os encontros na surdina de Skeeter e Aibileen e Minny são uma tentativa frustrada de conferir mais relevância ao fio condutor da narrativa do que ele realmente tem. Assim, dentre as histórias cruzadas do título, particularmente a da torta de chocolate é lastimável, acabamos conhecendo um pouco mais daquelas mulheres, descobrimos que Aibileen teve um filho que faleceu jovem ou que Minny, mãe de quatro filhos, é constantemente abusada pelo marido e trabalha na residência da emocionalmente frágil Celia (Chastain). Contudo, Tate Taylor piamente crê que mencionar meia-dúzia de problemas é o suficiente para que suas personagens tornem-se figuras tridimensionais e realistas, mas infelizmente, ele está errado.
Por outro lado, Tate Taylor chama atenção nos planos que acompanham as empregadas caminhando em direção a um ônibus ou no corte seguido de uma tomada aberta revelando a surpresa no jardim de Hilly, momentos construídos com rara felicidade e inteligência pelo diretor. E se ele acerta no plano-detalhe de um piris sujo de chá e no plantio de mudas de planta cujo significado tem um caráter triste e pessoal, é no mínimo embaraçoso o flashback envolvendo Constantine (Tyson) e Skeeter embaixo de um árvore. Aliás, a afirmação “você é minha mamãe verdadeira” só é perdoável porque saí da inocente boca de uma criança, o que não isenta o diretor de obrigar Viola Davis a pronunciar “You is” (algo como “Você és”), decisão vexatória e discriminatória, que inclusive contraria a lógica narrativa que a julga ser uma ótima escritora.
Embora confinadas a personagens cartunescos, o elenco de Histórias Cruzadas felizmente consegue conferir certa dignidade à produção. Se Emma Stone é a protagonista e abusa do charme e simpatia que a tornaram famosa, é Viola Davis quem se destaca (novamente). Transformando Aibileene em uma mulher resignada e cabisbaixa, mas pontualmente exibindo um olhar bondoso e esperançoso, ela parece ter encontrado nos filhos dos outros um alívio inócuo e transitório para a perda prematura do seu filho. O que reforça a ironia da monstruosa figura que os adoráveis pequenos transformam-se quando adultos e faz com que uma despedida ganhe contornos comoventes (embora excessivamente melodramáticos). Por sua vez, Octavia Spencer tem uma composição sensível e correta quando abaixa a guarda, prejudicando-se sempre quando se entrega ao habitual overacting e a expressão rígida de olhos esbugalhados, o que prova que o favoritismo no Oscar é um exagero monumental! O mesmo se aplica a Jessica Chastain e a sua desesperada necessidade de se encaixar no seio daquela sociedade apesar do esforço da atriz em ressaltar uma fragilidade que contrasta com a postura altiva e agitada normalmente exibida. Finalmente, Bryce Dallas Howard compõe uma personagem mesquinha, racista (apesar de negar ser) e cruel, acentuada nos maneirismos gestuais da atriz e nos olhares perfurantes que a transformam em uma grata mistura da Regine George de Meninas Malvadas com Reynaud de Chocolate. É apenas uma pena, portanto, que o roteiro não se esforce em jogar luz na sua personalidade mantendo-a como um clichê maquiavélico e inexplicável.
Se mencionei “pena”, este é o principal pecado do bobo Histórias Cruzadas: ele nos faz ter dó daquelas mulheres ao invés de invejarmos sua coragem e determinação de peitar a preconceituosa sociedade sulista. No fim, pensamos ter conhecido aquelas mulheres e vivenciado uma história de superação (não houve nem um, nem o outro) que sequer se justifica nas consequências triviais da publicação do livro, como a indignação de uma socialite ou o rompimento de um relacionamento.
Frivolidades, estas sim, merecidamente dignas de pena, quando comparadas à aludida batalha pela igualdade e direitos civis encabeçada por Martin Luther King!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “Histórias Cruzadas”
PERAÍ! Eu reconheço essa formatação de texto de algum lugar…
Não adianta – seu blog nunca será tão cool igual o meu. Aliás, nenhum blog nunca será tão cool quanto o meu. Qual outro blog NO MUNDO informa com precisão a duração do filme, incluindo minutos e segundos? QUAL?
Mas perdoo, porque mudei a formatação do meu algumas poucas vezes. Na verdade, sinto-me honrado por influenciar a blogosfera como meu olho para belas composições. Hahahaha
DEPOIS que eu assistir ao filme, comento sobre o texto em si.
Abraços
eu gostei do filme, mas sei que dividiu opiniões.
seu site vive me redirecionando…é isso mesmo?
Como assim? Explique-se melhor.
Histórias cruzadas Eu acho que é um excelente filme, a finalidade este filme com Octavia Spencer, Como todas as histórias existem pontos bons e maus, mas definitivamente, Preto e Branco é um agradável filme (aqui mais detalhes da história: http://www.hbomax.tv/sinopsis.aspx?prog=WHL230590), com um roteiro sólido, uma magnifica interpretação, excelente trilha sonora dirigida por Terence Blanchard, uma encenação benéfica e de grandes atores. Toda uma demonstração que o cinema de entretenimento não é incompatível com a qualidade.