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Idade da Inocência

Idade da Inocência (L’Argent de Poche, França, 1976). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Suzanne Schiffman. Elenco: Nicole Félix, Chantal Mercier, Jean-François Stévenin, Virginie Thévenet, Tania Torrens, René Barnerias, Claudio de Luca, Franck de Luca, Laurent Devlæminck, Bruno Staab, Sylvie Grezel, Richard Golfier, Philippe Goldman, Pascale Bruchon. Duração: 104 minutos.


François Truffaut compreendia as crianças como poucos cineastas já o fizeram. Após refletir acerca das experiências pessoais vistas no seu primeiro longa metragem Os Incompreendidos, ele revisitaria, pouco mais de 15 anos depois, a inocência da infância e a liberdade proporcionada durante aqueles breves anos. É algo que ele faz desde os créditos iniciais quando acompanha dezenas de meninos correndo despreocupadamente pelas ruas da cidade de Thiers. Eles não parecem ter destino, embora as pastas debaixo dos braços denunciem que esse seria o colégio local. Agitando-se em gritos e sorrisos pelas ruelas estreitas, passarelas e ladeiras, um coletivo de meninos fisicamente distintos uns dos outros, mas que compartilham sonhos, brincadeiras e a ignorância com as vindouras tragédias do amadurecimento. Nesse ritmo frenético, supostamente desleixado com a forma, Truffaut nos apresenta Idade da Inocência, um dos retratos mais doces dos últimos anos da infância antes que a puberdade comece a bater na porta e o flerte de ser adulto não deixe de ser somente um sonho distante dos pequenos protagonistas desta história.

Aparentemente, François Truffaut desejava privar seus protagonistas dos sofrimentos e tristes experiências vividas por Antoine Doinel, co-escrevendo com Suzanne Schiffman não um roteiro linear embrutecido, mas um compêndio de situações simultaneamente prosaicas, inusitadas e verossímeis de sua própria maneira. É um compêndio de retratos, quiça um conjunto de memórias a serem compartilhados quando aqueles pequeninos alcançassem à idade adulta com filhos e netos. Consequentemente, o tom episódico das aventuras reflete precisamente aqueles breves anos de inocência nos quais um dia é completamente distinto dos demais, reservando surpresas que sequer a rotina de aulas diárias e dos tristes domingos poderia macular. E não é de se espantar a demora do espectador em individualizar e distinguir cada um dos jovens nos primeiros encontros na sala de aula; eles parecem parte de um mesmo todo, encerrando fatias de nossa personalidade, como o sentimento de deslocamento inserido pela pobreza de Julien, a timidez e o amor impossível de Patrick, as diabruras dos irmãos De Luca e a descoberta da sensualidade de Bruno.

Dessa forma, a montagem de Yann Dedet encontra nos cortes secos a lógica para acompanhar tantas histórias simultâneas o que reflete o deficit de atenção das crianças entre tantas coisas que acontecem a seu redor. Em outros momentos, Truffaut comunga a comunidade de Thiers em planos mais abertos que acompanham ações concomitantes e múltiplos membros, como àquela que acompanha o drama da teimosa Sylvie, um megafone, uma cesta de piquenique (com uma garrafa de vinho) e os moradores do condomínio. Similarmente, a brincadeira do bebê Grégory e um gato no parapeito de um apartamento movem os vizinhos, tão enfatuados de alívio que sequer reconhecem a consequência surpreendente do que acabaram de ver.

Truffaut não liga para exageros! Ele brinca com eles; “as crianças são mais fortes do que nós”, um dos professores frisa. As crianças têm regramentos próprios, leis de conduta que transformam as (muitas) idas ao cinema em folclóricas pérolas já vivenciadas ou reconhecidas por cada um de nós: os primeiros beijos no escuro do cinema e as maneiras inusitadas de entrar no cinema sem pagar. Na sala de aula isso se repete, na impaciente espera de Patrick durante 2 minutos antes do sino do término da aula. Até mesmo situações corriqueiras renovam-se no ineditismo do olhar infantil, e o nascimento do filho do professor causa rebuliço entre os garotos ou um corte de cabelo assume proporções hilárias.

Mas, nem só de situações divertidas e extraordinárias é feita a narrativa de Truffaut. Há um pessimismo na jornada do maltrapilho Julien, vendo-o desregrado furtando jaquetas nos corredores do colégio ou coletando moedas e pertences abandonados nos brinquedos de um parque de diversões para ajudar a sustentar o casebre familiar onde é mal tratado pela mãe e avó. Inteligentemente, porém, Truffaut não revela ao espectador os abusos; basta o olhar embrutecido de Julien aos brinquedos – ele deveria ansiar por eles – ou seu jeito brusco e arisco com os demais colegas e membros do colégio no exame médico.

Reduzindo o escopo da narrativa para o restrito círculo de personagens – pais, filhos e tutores – Truffaut traçou um retrato satisfatório e indolor do que é ser criança: ou seja, um mosaico de sensações e aventuras sugestivamente desconectadas e autênticas como é esperado dessa fase da vida.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta-feira, 22 de fevereiro, com A História de Adele H. (1975).

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