Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Search
Close this search box.

Estou Pensando em Acabar com Tudo

Estou Pensando em Acabar com Tudo

134 minutos

Texto com spoilers.

Arte é uma ferramenta de reflexão, não apenas para quem a aprecia, mas também para quem a cria, e Charlie Kaufman, desde os roteiros de “Quero ser John Malkovich”, “Adaptação” e “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (que lhe deu o Oscar), até a direção em “Sinédoque, Nova York” e “Anomalisa”, encontrou, nas questões existenciais e filosóficas que pairam sobre a cabeça do homem médio, o filão para expurgar os monstros internos que lhe afligem. É parecido com seu alter ego, Jake, o protagonista do satisfatoriamente enigmático “Estou Pensando em Acabar com Tudo”.

Apesar de tentadora a vontade de buscar as respostas desejadas no livro adaptado de Santiago Nazarian, o filme apresenta todas as informações indispensáveis à compreensão das faculdades mentais de Jake, que são também o artifício narrativo adotado por Kaufman. Em vez da habitual objetividade, a narrativa é integralmente – ou quase – subjetiva, isto é narra os acontecimentos com a visão não-confiável de Jake, um zelador idoso e esquizofrênico de uma escola de ensino médio, que pode – ou não – estar revisitando as memórias, frustrações e angústias da adolescência e idade adulta, enquanto fantasia como desejava que sua vida deveria ter sido. Esta epifania é costurada com o auxílio de Lucy – nome que significa ‘luz’ –, uma mulher imaginária, idealizada e abstrata que pode – ou não – ser a amálgama daquelas que passaram ao largo de sua vida.

Lucy é o instrumento para que Jake reflita, como a doença psíquica lhe permitir, a respeito da vida e do fiapo desta que lhe resta, antes de ser consumido por dentro pelos mesmos vermes que devoraram os porcos da fazenda onde morou. Algumas pessoas nasceram para ser porcos e morrerem abandonados iguais a cordeiros congelados, é a pessimista conclusão a que chega ao fim da vida solitária e cuja experiência é definida a partir do pensamento: “Encho meu cérebro de mentiras para passar o tempo, num piscar de olhos”.

Com a história sedimentada na cabeça, a narrativa é, portanto, uma viagem através de estradas tingidas “pelo humor, emoções e experiências passadas” da realidade não objetiva imaginada por Charlie Kaufman. O diretor, desde cedo, evidencia isto ao delimitar a tela na razão de aspecto 4:3, e, não satisfeito, torna a experiência em algo ainda mais claustrofóbico e sufocante com recursos que reduzem, ainda mais, os espaços fílmicos: o carro e os cômodos da fazenda. De modo irônico, a narrativa contraria a afirmativa inicial de Lucy de que “o mundo é mais do que o interior de nossa cabeça”. Não só não é, como a mente também não é “bonita, de uma maneira sombria e angustiada”; é melancólica e pesarosa, similar ao inverno frio e rigoroso, onde não é possível enxergar mais do que um palmo além da própria mão.

Esta jornada pelo “físico, metafísico e ilusório” é feita com a ajuda de pistas visuais e de diálogos que parecem presunçosos e menos reveladores do que na realidade são, em realizar uma articulação intertextual com a arte – literária, cinematográfica e pictórica – que Jake consumiu e absorveu no curso de sua vida. Seria Jake astuto e inteligente como crer ser, ou apenas um sujeito medíocre que pinçou esta e aquela informação de livros para soar mais do que o jovem diligente que é e, quem sabe, justificar a nós o insucesso de sua vida?

A resposta talvez esteja na citação, em narração fora de campo, de Ralph Waldo Emerson, de que “nada é mais raro do que um ato próprio (…) a maioria das pessoas são outras. Seus pensamentos são as opiniões de outras pessoas. Suas vidas, um mimetismo. Suas paixões, uma citação”. Esta citação é, na realidade, uma paráfrase de Oscar Wilde, trazida no momento em que Lucy desce ao porão, onde Jake deve ter passado dias e noites reproduzindo as pinturas impressionistas de Ralph Albert Blakelock – que, a título informativo, era esquizofrênico. Ainda aqui, a vida de Jake é um mimetismo de tantas mais. Pior, mesmo esta expressão artística xerocopiada era mal recebida pelo pai de Jake – ou quem sabe pela fantasia da figura paterna –, pois achava impossível “sentir algo sem ter alguém sentindo algo ali”.

O roteiro, compreensivelmente verborrágico a quem não está acostumado a esta expressão narrativa, contém todas as chaves para abrir os baús da mente de Jake: a citação bíblica, de Isaías, de que “embora seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve”, faz alusão à jornada invernal até que o amargor de sua vida seja purgado na neve. Noutro momento, o pai deJake, já acometido pela doença de Alzheimer, cita que aguarda ansioso o instante em que “não precisará lembrar que não consegue mais lembrar”, introduzindo o conforto no pensamento niilista e suicida que atormenta o protagonista. Até detalhes menores, como por exemplo, a menção a um aniversário de 50 anos, rima com um elemento narrativo subsequente, quando Jake reflete que seria melhor recordar-se jovem ou adulto do que idoso. A opção pelas palavras é relevante: “Você escolheu bem seus pais”, comenta Lucy ao final do jantar, ainda que, dentre todos os caminhos da vida, justamente não escolhamos onde nascemos, muito menos quem são nossos pais. Uma prova do caráter esquizofrênico das lembranças não confiáveis de Jake, ou de que seus pais, retratados com dor e competência em múltiplos estágios de vida por Toni Collette e David Thewlis, podem ser construções mentais em vez de meras memórias.

Nada porém é mais significativo do que o jogo de palavras ao final: “ele está seguro (…) porque aqui é silencioso”. Associar a segurança ao silêncio remete às vozes e aos sussurros na cabeça inquieta de sua mãe, e confere a paz para articular ideias mais concretas do que fantasias. Não é a toa que o momento mais solar da narrativa seja a execução do musical Oklahoma! nos corredores do colégio: em vez do desastre de alunos mal executando os movimentos, vemos uma versão idealizada de Jake junto à figura feminina que queria encontrar. A dupla dança harmoniosamente até ser interrompida pela versão real do personagem, que então assassina sua imaginação.

Esta sequência que parece – só parece – haver caído de paraquedas remete à teoria da responsabilidade pelos próprios atos que Lucy menciona na viagem de retorno, e é relevante lembrar que, nesta cena, a luz alta do farol de um carro invisível entre e banha o interior do carro como a realização do que Jake precisa fazer para estar e morrer em paz: assumir a responsabilidade pela vida que viveu, ao invés de buscar culpados nas memórias e fantasias, na incapacidade de demonstrar e receber afeto e de aceitar que, muitas vezes, a vida simplesmente ofereceu limões azedos.

A ideia de partir, que acompanha toda a narrativa, é também metafórica: Lucy pretende retornar à cidade porque trabalha no dia seguinte, e Jake encontra desculpas – mesmo na sua versão alter ego na sorveteria de beira de estrada – para permanecer um pouco mais nas ilusões. Amarrar as correntes de neve nas rodas e partir é o signo que remete à perda da razão de viver e ao suicídio – metafórico, ao menos nos termos da peça musical. E aí, Lucy é também luz: a do fim do túnel.

A compreensão da narrativa está ligada ao entendimento desta personagem-chave: Lucy, Louisa, Lucia, Yvonne – a garçonete do filme dentro do filme – ou Amy – a mulher que, por breves segundos, a substitui na viagem de retorno, é uma espécie de superego, a razão dentro do caos, da turbulência e do tumulto mental. No correr da trama, a personagem abstrata vivida por Jessie Buckley, uma das melhores atrizes a surgir nestes anos, investiga os espaços da mente de Jake mesmo quando este não está lá: ela passeia pelos cômodos da casa, propõe reflexões e críticas, enquanto transmuda-se da mulher radiante no início, de casaco vermelho vivo e cachecol amarelo, àquela de azul, a cor descritiva da depressão. Até, na premiação falsa da maquiagem artificial ao cenário colegial, aplaudir de pé o protagonista por este haver assumido a autoria das próprias dores, ou por haver domado o ego.

Quem arremata isto é Jessie Plemons e Guy Boyd, o zelador, com atuações doídas: os sorrisos envergonhados, a tristeza ancorada no olhar, o peso de carregar esta consciência adoecida. Jake é o retrato da melancolia do homem derrotado, ora pela vida, ora pela doença, em uma narrativa envolvente em como tenta ser empática e ajudar seu protagonista a acabar com tudo.

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

Críticas
Marcio Sallem

1917

Crítica de 1917, indicado a 10 Oscars e

Rolar para cima