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Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual

(Medianeras), Argentina/Espanha/Alemanha, 2011. Direção: Gustavo Taretto. Roteiro: Gustavo Taretto. Elenco: Javier Drolas, Pilar López de Ayala, Inés Efron, Adrián Navarro, Rafael Ferro, Carla Peterson. Duração: 95 minutos.

Em 2005, na ocasião do lançamento do curta-metragem que inspirou Medianeras, o diretor e roteirista argentino Gustavo Taretto já possuía o olhar trágico atinente ao mundo contemporâneo de relacionamentos virtuais e fugidios e de arranha-céus que dominariam a paisagem das metrópoles, despersonalizando-as definitivamente. 6 anos depois, e outros três curtas-metragens na bagagem, Taretto revisitou aquele universo  de quilômetros de fibras ópticas, celulares e redes sem fio e a incessante transmissão de bits, que, sob a falsa promessa de unir àqueles mais distantes, ironicamente serviram para nos distanciar dos relacionamento verdadeiros de contato e emoção sincera. Sobrou uma deturpação da dimensão gregária do ser humano, ao mesmo tempo enganado pelos avatares, ficções que não condizem com a realidade, e submisso ao conceito subnutrido de paixões efêmeras, de incapacidade de comunicação, de sexo casual, desprovido do prazer da descoberta ou da dor da perda de alguém querido.

Evidentemente que o que Gustavo Taretto aponta não é novo. Aliás, acontece diante de nossos olhos com a tácita conivência dos pares enclausurados na segurança do lar e, naturalmente, da brilhante tela LCD de modernos computadores da Apple. Não somos reféns da tecnologia, pelo contrário, vivemos uma síndrome de Estocolmo na qual nos apaixonamos pelo nosso captor. A evolução do ser humano vem condicionada a isto, e se não somos mais os mesmos de décadas passadas, precisamos encontrar um meio de manter uma dimensão social e humana sem nos fechar às inovações diárias no universo tecnológico. Portanto, mais do que uma constatação fatídica do que é existir numa metrópole, a narrativa de Gustavo Taretto é o esforço de duas pessoas desfuncionais em busca do equilíbrio imprescindível para não enlouquecer definitivamente. A doce e otimista alegoria de que, mesmo perdidos em meio a uma selva de concretos, existe uma alma gêmea que nos aguarda. 

Com esse propósito em mente, Taretto desenvolve um simples e apaixonante retrato de dois personagens que, de tão engessados nos cubículos que residem, acabaram incapazes de desenvolver uma habilidade comum do ser humano: a arte de conversar. Não que não haja diálogos na narrativa, mas estes cedem lugar a monólogos nos quais adentramos nos pensamentos e opiniões de Martin (Drolas) e Mariana (Ayala), e as interações com outros seres humanos surgem raras, desajeitadas e incômodas. Isto é algo que se torna evidente quando Martin silencia diante da jovem que caminha cachorros ou no ofício de Mariana de decorar vitrines, o que a leva a dialogar com manequins de boutique e a se masturbar usando um deles, revelando-se inclusive, incapaz de aceitar um convite de jantar por banal que este pudesse parecer. Ademais, eles são jovens adultos comuns, simpáticos a sua própria maneira e que à primeira vista não teriam o porquê de se enclausurar da sociedade.
Contudo, este parece ser o marco do impacto da metrópole sobre o ser humano. Perdidos em condomínios  de personalidades próprias e desinteressantes, cujo interior não consegue disfarçar a segregação social em função de andares, letras do apartamento ou o acesso à luz do sol, Martin e Mariana mal suspeitam que se separam por uma rua, e os esforços da narrativa, e do acaso, em tornar o encontro deles impossível não são apenas divertidos como verossímeis, mesmo que dependam do suicídio de um cachorro. Sem sequer desconfiar da existência de um ou de outro, ambos se arrastam na letargia cotidiana, esforçando-se para se manter vivos (ou “vivos”) e, sobretudo, presos a frivolidades que os impedem de direcionar o olhar para a pessoa certa. 

Martin é um neurótico desenvolvedor de páginas para a internet que atravessa as insones madrugadas nos chats das redes sociais enquanto digere o rompimento de sua ex-namorada que partira para morar nos Estados Unidos. Recordando a despedida no aeroporto como o instante no qual “perdeu o seu grande amor e a capacidade de voar“, simbolizada por uma pedra, resquício da única viagem que realizara, Martin está tão habituado a realizar tudo através da grande rede que sair do apartamento consiste num suplício. Isto se reflete nos divertidos receios do seu cachorrinho Susú, temeroso de sair para passear e de conviver com outros de sua espécie, destinado, igual ao dono, a uma existência solitária.

Já Mariana é melancolicamente trágica. Depois de descobrir enxergar no namorado um estranho com que misteriosamente conviveu por mais de 4 anos, ela abraça uma reclusão autoimposta parcialmente fruto das grandes expectativas que traçou para sua vida – e não é difícil imaginar que na sua idade, ela sonhara estar casada com filhos e exercendo a arquitetura, o que confessa nunca ter feito. Fóbica, a moça manifesta o temor de existir nas gravuras de um livro “Onde está Wally?“, onde, impossibilitada de encontrar o sujeito de camisa listrada e óculos fundo de garrafa, constata que é mais uma na multidão, ordinária, confundida com todos os demais rostos que transitam nas ruas de Buenos Aires.

Fotografado em tons de azul, independentemente da estação do ano, a narrativa destina-se a frustrar as expectativas do público insinuando um encontro de Martin e Mariana que parece jamais acontecer. Assim, quando vemos os traços de um coração formados nos rostos dos dois caminhando em direções opostos, o destino parece brincar conosco, pregando peças e se alimentando de nosso desejo de ver os dois juntos. 
Em uma narrativa repleta de inteligente metáforas – sendo a minha favorita aquela que revela na numeração das raias de uma piscina a predisposição autodestrutiva dos relacionamentos de Mariana – Gustavo Taretto demonstra sua intenção na menção ao clássico de Woody Allen, “Manhattan“, quando o protagonista  é alertado pela jovem ex-namorada a “ter mais fé nas pessoas“. Momento que atiçou a desproporcional comparação do argentino ao lendário Woody, mas que ingenuamente insinuou a superação do cinismo, sarcasmo e niilismo pelo otimismo escancarado no amor inevitável, restaurador e salvador.
O que não de ser muito bem-vindo, principalmente porque a embalagem é vivida e destacada e o conteúdo inevitavelmente apaixonante igual a este pequeno clássico romântico chamado Medianeras.

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7 comentários em “Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual”

  1. Rafaela Braga

    Vi hoje e vim procurar a crítica. Adorei adorei! "Quase vi" várias vezes mas a sinopse não cria muita expectativa, fui deixando pra depois… Me surpreendeu.

  2. Acabei de assistir e achei incrível. Vai virar meu filme de cabeceira, como muitos que já revi tantas vezes. É impossível não se enxergar nele. Adorei!

    Ana Carla

  3. Surpreendente!! Foi a melhor definição que encontrei, diante da angústia que perpassa em pensamentos durante todo o longa. Vale a pena assistir várias vezes.

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