What Ever Happened to Baby Jane?, Estados Unidos, 2012. Direção: Robert Aldrich. Roteiro: Lukas Heller baseado no livro de Henry Farrell. Elenco: Bette Davis, Joan Crawford, Victor Buono, Wesley Addy, Maidie Norman, Robert Cornthwaite, Anna Lee, Marjorie Bennett. Duração: 134 minutos.
Sensação das matinés nos teatros em 1917, a estrela mirim Baby Jane cresceu para se tornar a amargurada e azeda megera interpretada por Bette Davis. Antes, porém, de se esconder sob uma grotesca maquiagem e lamber a tampa de garrafas de uísque, a tragédia do que ela viria a se tornar estava anunciada: da explosão histérica em frente aos fãs ao exigir do pai sorvete após uma apresentação ao fracasso de sua carreira no cinema enquanto a sua irmã Blanche, antes apagada, acumulava elogios, Jane mostrara-se mimada e incapaz de lidar com decepções, rejeições e de ser coadjuvante naquela família. O que nos leva ao incidente central de O Que Terá Acontecido com Baby Jane? quando, embriagada, Jane atropela Blanche e a coloca em uma cadeira de rodas amputando definitivamente seus sonhos de estrelato no cinema.
Misteriosamente escolhida para ser guardiã da irmã, uma das muitas incoerências do fraco roteiro de Lukas Heller, Jane dedica seus dias a atormentar a indefesa irmã aprisionada no segundo andar. Ao limpar a gaiola do canário, a cruel irmã desdenha que este escapara; o telefone, um dos únicos contatos de Blanche com o mundo exterior é arrancado; e a bondosa empregada doméstica Elvira, ciente das crueldades praticadas, é despedida de imediato. Parece óbvio que a humilhante rotina de Blanche resultaria em repetidas agressões e o cerceamento de suas liberdades, e o diretor Robert Aldrich, que nunca foi dos mais talentosos, reproduz com competência o calvário da irmã no enquadramento Hitchcockiano da escada que comunica o segundo andar ao térreo, ou seja, à salvação ou ao menos uma estreita brecha de oportunidade.
Entretanto, no restante do tempo, Robert Aldrich tende a cometer os piores clichês do gênero… repetidas vezes. Nas vezes em que Jane dirige o carro para resolver assuntos pendentes no centro, Blanche sempre é coincidentemente surpreendida quando estava prestes a conseguir ajuda, ou atirando uma bolinha de papel nos vizinhos enxeridos (que não desempenham papel algum relevante) ou tentando alcançar o telefone no térreo. Além disso, Aldrich ignora a credibilidade e obriga uma personagem a virar despreocupada as costas a Jane, segura de que este jamais desferiria uma martelada na sua cabeça depois de descobrir o seu segredo. Para piorar, a trilha sonora de Frank de Vol é intrusiva e aborrecida demais nos acordes típicos de suspense (o tema usado para pontuar o receio de Blanche ao suspender a tampa do prato do café da manhã chega a ser embaraçoso) mas, sobretudo, nas tentativas frustradas de fazer gracinha, no humor apelativo e depreciativo.
A cronologia também é desleixada demais para fazer sentido e, pessoalmente, tive dúvidas em me situar no tempo. A princípio, a narrativa parece se estender ao longo de poucos dias, algo que faz sentido visto que Blanche vê-se privada de água e comida em certo momento; mas, na menção de que o pianista fracassado Edwin (Buono, indicado ao Oscar) retornaria na quarta-feira para ensaiar com Jane ou que Elvira comunica voltar na semana seguinte esta hipótese rui completamente. Mais, o desaparecimento de certa personagem desperta atenção imediata da polícia e, quando um detetive informa estar realizando telefonemas, eu me perguntei “Quando, se o cadáver mal tinha esfriado?”.
Suspendendo a reflexão lógica, “Por que Jane demorou tanto para explodir em rancor?”, as atuações de Bette Davis e Joan Crawford são, de fato, os pilares que sustentam a narrativa. Reputadas inimigas nos bastidores, não economizando declarações mesquinhas e ofensivas, o destino quis que as atrizes duelassem nas telas. Bette Davis abraça o exagero, arrastando propositadamente os pés no assoalho e irritando com a sua estridente risada mas, sem provocar ódio no espectador, e sim pena. Patética e decrépita nos sonhos de reviver o passado, ela anseia ser relembrada até por aqueles que sequer conheceram sua meteórica carreira. Por outro lado, Joan Crawford está presa pelo pedido de sua mãe feito quando era criança (perdoe-me o trocadilho), reagindo com pavor às ofensas ou as engolindo e implorando piedade. Disto, sente-se a dor de Blanche não pelo sofrimento e olheiras fundas, mas pelas ações desproporcionais de Jane e se tem exata dimensão de quem “venceu” o duelo em cena.
E graças a ela, a revelação covarde e inverossímil confessada na praia (reencene-a na sua cabeça e veja se faz algum sentido), não é tão desastrosa. Pois, há uma ironia salvadora no plano final, no “espetáculo” sensacionalista realizad
o a um restrito público de curiosos. Naturalmente, eles desviariam o olhar como outros fizeram no passado, mas finalmente, Baby Jane encanta, nem que seja pelos motivos completamente errados.
Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, O Homem de Alcatraz.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
8 comentários em “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”
Muito bem estruturado seu texto. Se ainda não tinha visto o filme, agora com certeza eu o verei – hoje mesmo, provavelmente -, com mais prazer em vê-lo, inclusive.
Clássico indiscutível. Talvez o melhor filme da fase "megera descontrolada" de Bette Davis!
Abraços!
Obrigado 🙂
Respeito que o ache um clássico, mas não indiscutível, pois é justamente o que faço nesta publicação 🙂
Não acho que a questão de que atriz levou a melhor no embate pode ser tão "exata" assim. Quando lembro do filme até hoje fico boladíssimo pensando em qual foi melhor.
Julgar as ações e o exagero de Miss B. como um problema é a mesma coisa que julgar, sei lá, Vivian Leigh em Um Bonde Chamado Desejo (Uma Rua Chamada Pecado? Nunca lembro o nome nacional, haha) tendo como base o Marlon Brandon. Estilos e intenções totalmente diferentes.
O "embate" justifica-se que, nos bastidores, as atrizes se odiaram. Acho que Bette Davis saiu vitoriosa porque a sua personagem é mais densa que a de Joan Crawford, cuja revelação ainda a enfraquece mais.
No mais, não falei que a atuação de Bette Davis é exagerada, por sinal é o que mais gosto no final, o jeito de megera maquiavélica imprimido.
Até a próxima 🙂
Na realidade, o filme possui falhas e desgastes narrativos, isso é evidente, mas não deixa de ser um clássico por ter duas grandes estrelas do cinema em cena. E no fim, é isso que vale.
Acabei de ver o filme e concordo com o texto em tudo.
A cena da escada e as duas excelentes atrizes foram os pontos positivos do filme e só isso já basta para dar uma olhada no filme. Já o resto do roteiro poderia ter sido bem melhor.
Três estrelas bem merecidas.