Escrito a seis mão, com destaque a Pier Paolo Pasolini, o roteiro nos reconduz a uma praça em Roma, onde a prostituta havia sido avistada pela última vez, na esperança de descobrir o assassino a partir dos depoimentos de cerca de meia dúzia de transeuntes. Diferentemente, porém, do clássico japonês, onde existia um esforço intelectual para afastar a verdade da mentira, esta narrativa é menos rebuscada, o detetive muito mais onisciente e o desenrolar é linear, praticamente repetindo a mesma fórmula para cada um dos depoentes: personagem revisita o período vespertino e o que o levou a estar na praça naquele momento da noite apontando, se existir, algum outro suspeito que tenha tomado nota.
Forma-se praticamente uma antologia de pequenas histórias sobre a realidade marginal italiana: na primeira, Canticchia é um rapaz à procura de emprego e que encontra dois amigos e parte com eles para vagabundar e praticar furtos; na outra, Bostelli é um gigolô vivendo às custas da herança da mãe de Esperia, a sua esposa, e não hesitando de traí-la quando conveniente; há ainda um soldado, Theodoro, abordando mulheres na rua, acompanhando uma visita guiada ao Coliseu e terminando o dia dormindo no banco da praça, além de dois adolescentes, Francolicchio e Pipito, precisando de dinheiro para impressionar duas garotas. Cada um destes flashbacks é intercalado com breves insights do último dia da vida da prostituta no momento em que uma forte e abrupta chuva atinge Roma.
Menos inteligente do que se presumiria ser, a narrativa preocupa-se mais em humanizar os personagens do que em descobrir a identidade do assassino (praticamente um anti-clímax). Contando com, na maioria, atores amadores, alguns relativamente talentosos e outros muito embaraçosos (Allen Midgette, o intérprete do soldado, e Alvaro D’Ercole, o de Francolicchio, decepcionam), Bernardo Bertolucci emula o estilo neorrealista nos planos-sequência e closes desconfortáveis, nos diálogos improvisados e na iluminação natural na fotografia de Giovanni Narzisi. Aliás, assim como em Mamma Roma os planos noturnos têm um charme maior, especialmente o recorrente plano da praça, sob luzes escassas.
E é na praça Paolino, onde todos aqueles desconhecidos eventualmente se esbarrariam, que Bernardo Bertolucci demonstra um enorme talento na concepção de quadros que viria a se solidificar nos seus clássicos O Último Tango em Paris e O Último Imperador. Revelando somente o necessário, o diretor insinua uma presença na caminhada de Canticchia à distância para depois a concretizar na figura de um novo personagem. Da mesma maneira, a decupagem e a mise-en-scène são muito bem elaboradas, pensando nos detalhes da geografia da cena de forma que não existisse qualquer ponta solta, e a presença do soldado é tão discreta num primeiro momento que mal saberíamos se tratar de um novo suspeito.
Este domínio da narrativa, mais do que o conteúdo que acaba sendo desapontante, é o que valid o primeiro esforço de Bernardo Bertolucci na direção. Todos sabemos quem esse jovem italiano viria a se tornar depois.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “A Morte”
Muito bacana a análise, Márcio. Saber quem seria Bertolucci dali a algum tempo torna a experiência de conferir "A morte" ainda mais interessante. Acredito que o desapontamento referente ao roteiro seja um charme a mais no momento em que decidimos revisitar a carreira desse gênio, ainda que, para o filme em si, seja de fato um problema.
Abraços!
Bertolucci começou bem…
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